Se fosse uma derrota apenas do futebol estaria tudo bem. Passaríamos alguns dias de tristeza, mas logo tocaríamos a bola pra frente.
Mas o que ocorreu no Mineirão foi muito mais do que coisa do futebol.
A Seleção Brasileira é muito mais do que um time. O futebol é parte fundamental da nossa identidade. É uma expressão de quem somos. Quando um brasileiro viaja ao exterior percebe que nosso futebol é algo que carregamos conosco ainda que não gostemos do esporte. É tão genuíno como nossa bandeira, nossa música, nossas paisagens. Talvez até mais do que isso. O encantamento, a curiosidade, o interesse que provocamos em comparação com outras nacionalidades está diretamente ligado à memória afetiva da nossa seleção. Somos Pelé, somos Zico, Sócrates, Falcão, Romário e Ronaldo.
Nossa política externa tira proveito deste encantamento para a construção de um "Soft Power" que tem contribuído para construção de uma espécie de liderança alternativa e apoiado nossa diplomacia.
O desastre do jogo contra a Alemanha foi fruto de questões relacionadas ao nosso futebol e também de cunho sociológico.
Serve para desmascarar falsas verdades que passaram a habitar o cotidiano do esporte principalmente a partir da derrota para a Itália em 1982, aí sim coisa tipicamente do futebol.
Passamos a negar aquilo que somos. A tentar imitar fórmulas "civilizadas" de futebol. A formar mais volantes do que atacantes, a copiar esquemas táticos que transformaram nosso futebol ano após ano em uma aberração esquizofrênica.
Fruto de entendimentos históricos equivocados, passamos a cultivar falsas virtudes.
Que o futebol brasileiro deveria ter apenas os grandes clubes e estes não deveriam mais jogar no interior do Brasil. Destruímos o nosso celeiro de craques.
Com o pretexto de "libertarmos os jogadores", tiramos a autoridade dos clubes de futebol e entregamos nossos jovens (para não dizer crianças) jogadores aos especuladores do futebol. Empresários cada vez mais ricos que colocaram os clubes brasileiros de joelhos e passaram a revelar apenas os jogadores que lhes fossem mais convenientes. Os maiores craques sequer despontam nos nossos campeonatos, surgindo ao nosso conhecimento em um grande clube da Europa.
Passamos a copiar as fórmulas dos campeonatos Europeus. Na maioria dos países daquele continente, apenas dois ou três clubes possuem chance de se sagrarem campeões. Mesmo o Brasil sendo um país com dimensões continentais e com pelo menos dez times favoritos a cada início de campeonato, jogamos um torneio modorrento e desinteressante para o torcedor.
Começamos também imitar o jeito "civilizado" de torcer. Acabaram com as gerais, com as arquibancadas. Agora, o futebol é coisa de classe média alta. Perdemos dia-a-dia a cultura de estádio. O povo fica de fora da festa. Em nome da modernidade e de uma estratégia de negócio estúpida, preterimos um público consumidor de quase duzentos milhões de pessoas para manter os privilégios de uma minoria que consome o futebol somente ao sabor das conveniências temporárias.
Hoje, um clube não disputa mais o Campeonato Brasileiro. Nosso maior certame se converteu em mera porta de acesso para a Libertadores e para o Mundial, quando aí sim, jogando com um time europeu poderíamos ser reconhecidos. Os campeonatos regionais morreram. Grandes clubes do interior do Brasil que revelaram historicamente grandes craques hoje estão falidos.
Alguns dos emissários destas falsas virtudes que desorientaram o futebol brasileiro foram os técnicos. Em sua imensa maioria, são muito ruins. Vestindo a máscara de "professores" e "estratégistas", ganham rios de dinheiro para proferirem bobagens e absurdos. Controlam todos os departamentos de futebol dos grandes clubes e apresentam fórmulas mágicas em que o jogador de futebol se tornou mero coadjuvante infantilizado. Nossos craques devem estar subjugados à sapiência supostamente erudita de retranqueiros sem criatividade. A Copa do Mundo no Brasil mostrou novos comportamentos táticos ofensivos, muito diferente do estilo das nossas grandes "estrelas" ultrapassadas que copiaram justamente o que a Europa tem de pior, não de melhor.
Para além nas quatro linhas, o nosso futebol mudou e a nossa sociedade também.
Os meninos que outrora brincavam nas ruas e nos campinhos foram afastados da bola. As periferias das grandes cidades espremidas pela especulação imobiliária não oferecem mais espaços para a molecada bater a sua bolinha. Não é à toa que cada dia revelamos mais jogadores de classe media para cima. Os campos que outrora foram de "várzea", hoje estão cercados e controlados. O acesso aos espaços para a prática do futebol, tornaram-se moeda política e eleitoral. Todo campo tem um "dono" e quem não paga não joga.
Cada vez a criançada gosta menos de futebol. Ao invés de brincar com bola ou outros jogos e atividades coletivas, a molecada passa a ter mais interesse nos jogos eletrônicos e nos aparelhos celulares. Perdem o gosto de brincar e estão entregues a uma espécie de erotização precoce, consequentemente muito confusa. A vaidade ocupa uma dimensão exagerada e indesejável para a idade. Ao invés da camisa do time de coração, as crianças querem as de marcas conhecidas.
O fetiche da mercadoria hipnotiza inclusive os meninos que viram jogadores de futebol. Fruto do nosso tempo histórico e do triunfo do individualismo, estes jogadores preocupam-se com o próprio patrimônio, deixando de lado o gosto pelos grandes empreendimentos coletivos. O sabor pela vitória torna-se, portanto, dispensável e muito rapidamente, os atletas perdem o desejo pelas disputas, sem perceber que para o sistema é muito conveniente que eles enriqueçam e abram mão de seu potencial de comunicação com o conjunto da sociedade.
A vitória do jogo coletivo da Alemanha nos deixa certos recados. Tanto dentro quanto fora de campo estamos restritos às explosões individuais e perdidos em disputas de personalidade, numa sociedade que não pode ser coletiva, simplesmente porque não quer e não sabe ser igual.
O país do Pelé, da praia e do carnaval não compartilha mais os espaços públicos e coletivos. No futebol como na vida da gente, persegue-se o acesso aos espaços privados.
Nossa sociedade mudou. Mas, pelo menos por hora, o que mais se vê é a resistência ao acesso universal dos indivíduos às instituições, à justiça, às garantias sociais, ao consumo, aos espaços de privilégio.
Temos décadas para absorver o golpe deste jogo contra a Alemanha. O importante é tirarmos lições dentro e fora do campo.
O Brasil ganhou onde imaginava perder. A Copa foi um sucesso. O temor do vexame frente aos estrangeiros que atormentou tanto alguns setores da sociedade não se configurou. Ao contrário, voltam quase todos satisfeitos e surpreendidos positivamente. Nós perdemos justamente onde imaginávamos ganhar. O vexame veio justamente do que antes nos dava orgulho.
O Brasil precisa fazer as pazes consigo mesmo. Pra jogar bola é preciso se encontrar. É preciso compartilhar os mesmos espaços. É preciso aprender com os outros, mas também fazer do nosso jeito, acreditar nas nossas potencialidades.
Não adianta avacalhar os jogadores que estavam em campo contra a Alemanha. Eles jogaram com vontade, dentro de suas limitações. O que mais nos atormenta é que estava em campo o que tínhamos de melhor. O resultado elástico foi fruto de uma intercorrência tática e técnica. Se a perda da Copa de 1982 nos tirou do caminho, que esta derrota vexatória sirva como um novo momento fundador do nosso futebol.
Podemos nos encontrar, mas para sempre teremos de conviver com essa cicatriz bem no meio da cara.
Sensacional!
ResponderExcluirAnálise lúcida e objetiva.
Mas, infelizmente, não atingirá os magnatas da bola, que tudo farão para manter o "status quo".
Parabéns, vc falou tudo e mais um pouco.
ResponderExcluirMuito bom Rafael!
ResponderExcluir