Hoje é sexta-feira santa.
Quando eu era criança isso era coisa séria.
A gente sequer podia falar muito alto.
Eu, além de batizado e comungado também fui crismado.
Embora hoje eu não seja mais religioso, confesso que era muito divertido àquela época freqüentar o grupo de jovens.
Certa madrugada de sexta santa eu passei em vigília.
Cabia aos homens a tarefa de ocupar a igreja até o dia amanhecer. Não sei porque, mas as mulheres deviam ficar em casa, enquanto os varões guardavam o templo.
O fato é que aos 15 anos eu me sentia muito satisfeito estando entre os homens da paróquia. Em meio à madrugada, alguém surgia com uma garrafa térmica e oferecia um pouco de café aos vigilantes homens que estavam ali, rompendo a noite escura numa tarefa espiritual e edificante. Eu bebia o café sem conter a satisfação. Estavam ali o dentista, o guarda, o filho do farmacêutico, o bêbado em restauração, o pedreiro, o empresário, o desempregado e eu. Outra porção de homens sérios e viris. Mais uma molecadinha do grupo de jovens que entre outras coisas agradava os pais, usando a religião para se iniciarem na tarefa de romper as madrugadas.
Eu entendo quem gosta de religião. Eu não gosto mais. Porém entendo verdadeiramente o conforto espiritual e até o pertencimento social que a religião oferece.
As ideologias surgem e ocupam o espaço que "era de deus". E não falo somente das ideologias políticas. O consumo é a benção instantânea. Material e efetiva. Consistente como um miojo. O produto está lá na sua frente e você não precisa de muito esforço para interpretar os milagres divinos. Basta crer no deus do capital e ele te da graças e te oferece uma prova bem palpável de seu poder.
Pra mim, a questão era sim ideológica e política, mas jamais me tornei ateu. Apenas me afastei da igreja. Penso como um católico, isso não dá para mudar, mas definitivamente me considero sem religião.
Não sou contra as religiões, mas cada vez mais me aborreço com os religiosos. Me parece muito contraditório um deus que opere primordialmente milagres nas economias familiares e ao mesmo tempo seja usado para "explicar" é "garantir" a continuidade das grandes injustiças sociais estruturais. Sem contar o discurso conservador e rancoroso contra algumas minorias.
Certa sexta-feira santa cai na besteira de ir ao mercado pouco antes da hora do almoço. Aquilo estava lotado com a população comprando o peixe que fosse possível. A fila do caixa estava insuportável e o cheiro de bacalhau misturado com aquele líquido do peixe que descongelava pouco a pouco empestava o ar.
Resolvi esperar. Ao meu lado uma senhora com os cabelos longos e vestido singelo começava a resmungar.
Parecia querer um pouco de atenção, pois falava alto e olhava para os lados em procura de algum apoio.
Eu procurei esvaziar a minha mente e abstrair o que a velha falava. Respirava lentamente e dirigia a minha mente a qualquer outra coisa que não fosse aquela merda.
Mas a senhora insistia. Começou a falar mais alto e gesticular. Não teve jeito, comecei em fim a ouvir os seus protestos: - Onde já se viu ter que comprar peixe justo na sexta-feira. Quem disse que não pode comer carne na sexta santa? Isso não está escrito na bíblia. Jesus nunca mandou parar de comer carne. O sujeito não segue a bíblia sagrada e acha que vai ser salvo por comer peixe na sexta-feira. Jesus não quer que você deixe de comer carne...
Continuou durante um bom tempo com aquilo e eu tentei manter a serenidade. Até que ela segurou o meu braço, o que de verdade me assustou, além de me deixar instantaneamente puto. Aquela véia parecia uma bruxa, socorro.
Até que ela sem suportar mais falar sozinha comete a besteira de me perguntar: "Não é verdade, fio?".
Procurei me tranqüilizar. Nessas horas eu me lembro do cínico que vive dentro de mim. Ele sempre me defende. Percebendo que a senhora era evangélica, mas eu sem nenhuma ambição em discutir religião, apenas e tão somente sacanear aquela mulher chata dos diabos, respondi:
A senhora tem razão. Lá em casa, graças a Nossa Senhora Aparecida comemos carne todos os dias da semana. Até em sexta-feria santa. Creio muito em Nossa Senhora. Ela faz milagres.
Retornei a minha seriedade e indiferença iniciais. A velha ficou louca. Olhava para os lados, urrava é resmungava, mas agora em silêncio.
Fiquei satisfeito comigo mesmo.
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