Eva Perón vivia seus últimos dias de vida. Tinha apenas
trinta e três anos de idade. Sofria pela metástase de um câncer que surgira em seu
útero.
O drama de Evita tocava milhões de argentinos e argentinas
que faziam vigília por sua recuperação.
Mas não todos tinham compaixão por sua doença. A admiração
por Eva, que se convertia em uma espécie de ideologia política própria, sem nenhuma
estruturação litúrgica, porém decididamente muito ligada à identidade de classe
possível na Argentina dos anos 50, era considerada pelas elites como coisa
menor. Dizia-se (e se diz ainda), que era algo como “coisa de empregada
doméstica”.
Nem a dor, nem a morte que se avizinhava. Nenhum drama
inibiu quem colocava o ódio político e o ressentimento social acima de todas as
coisas.
“Viva o Câncer!”. Esta foi a frase que apareceu escrita no
muro de sua residência, pouco antes de sua morte.
Havia muita gente regozijando por seu padecimento.
Festejando sua morte.
Não era pra menos. Pra quem levava a noção de hierarquia
social como algo naturalizado e parte integrante de si mesmo, a
figura de Evita era absolutamente insuportável.
Eva nascera fruto de uma relação extraconjugal de seus
pais. Nunca foi totalmente reconhecida. No velório de seu pai, havia sido
impedida de prestar seu último adeus. Quando se mudou para Buenos Aires, Evita
passou a ser uma atriz de rádio. As radionovelas explodiam no país inteiro. O
rádio passava a ser o principal veículo para integração do país e também para a
comunicação com as massas de trabalhadores.
O rádio era solene. Não era minimalista como nos nossos
dias. Era um aparelho grande a ser colocado no meio da sala. As famílias se
reuniam em volta dele. Perón, como nenhum político de seu tempo soube tirar
proveito desta nova ferramenta de comunicação. Da mesma forma, como ninguém até
então, soube enxergar o trabalhador operário como um ator político relevante a
ser mobilizado para a construção do trabalhismo na Argentina. Em bairros e
cidades mais afastadas, o rádio era pendurado nos postes para que os mais
pobres também pudessem ouví-lo.
Eva Duarte, como qualquer atriz de rádio ou de teatro não
ocupava um lugar social muito distante das prostitutas.
Iniciou uma relação amorosa com Perón. Um homem mais velho e
poderoso. Por virtude e por fortuna, Perón se converteu em presidente da
Argentina, chegando ao poder nos braços do povo. “Cabecitas Negras” eram
chamados seus eleitores. Viviam nos subúrbios de Buenos Aires, mas sequer
podiam frequentar os luxuosos espaços da região central. Muitos passaram a
conhecer o centro nas manifestações políticas do peronismo. Era um escândalo. A massa de
descamisados e de pés descalços. Nadavam nos chafarizes, tomavam mate nas
praças antes exclusivas dos grandes cavalheiros.
Evita, agora primeira-dama, passou a frequentar os salões da
oligarquia argentina. Jamais foi aceita. Os interesses sazonais das elites
econômica e política, obrigava os grandes negociantes a aturarem aquela “bastarda”.
Não eram raras as vezes em que, após a chegada de Evita, as
damas da sociedade se retiravam de recintos como o famoso Teatro Colón. Chefes
religiosos se recusavam a reconhecer sob a ótica da Santa Igreja a união de
Juan Domingo e Eva.
O poder modifica a todos. É uma experiência definitiva.
Alguns se afogam em meio a vaidades tolas. Sentem-se entorpecidos pelo luxo e
pela adulação de gente falsa e mentirosa. Não são poucos aqueles que esquecem
suas raízes. Que mudam de classe. O mundo está repleto de gente que com o poder
perde a capacidade de olhar para si e próprio e também condição de enxergar o
mundo a sua volta. Concentram-se apenas em pertencer e conservar o status
adquirido.
Mas Evita não foi assim! Eva tinha uma personalidade
controversa, mas soube como poucos na história fazer o bem. Falava como uma
mulher do povo. Cometia erros gramaticais que eram jocosamente ridicularizados
por alguns. Enfrentava a oligarquia. Fez o que pode para ajudar os necessitados.
Recebia a todos em seu gabinete. Dava desde presentes de natal até máquina de
costura, brinquedos, tratamento dentário e hospitalar. Fazia o que era
possível. Não era uma primeira-dama tradicional. Mesmo com a saúde muito frágil,
na frente de todos seus assessores perplexos beijava os leprosos e outros
doentes na boca.
Alguns podem considerar isso como caridade barata. Coisa de
político. Mas numa sociedade tão marcada pelo pensamento elitista, os gestos de
Evita adquiriam um significado gigantesco.
Os órfãos, até aquele momento, eram obrigados a circular com
um pijama escrito “Criança Órfã”. Evita acabou com aquilo. Acolhia as crianças órfãs em novas
escolas de tempo integral que lembravam um parque de diversões temático.
Defendia seu povo. Beijava homens e mulheres pela rua. Assim era Evita.
Morreu muito jovem. Não era uma marxista nem dispunha de
conhecimento teórico organizado sobre qualquer ideologia política. Era
peronista, como gostava de dizer. “Uma ponte entre o povo e Perón” Quem assim
quisesse poderia “atravessá-la”, falou certa vez. De fato, Evita era o braço de
Perón com a sociedade civil. Não por acaso, depois de seu desaparecimento, o
peronismo perdeu muito de sua face mais humana. Perón nunca mais foi o mesmo
líder.
Evita era a puta. A bastarda. A ralé. Era odiada no “high
society”. Sim, havia gente comemorando o seu câncer. Sua presença ofendia. Sua
existência era insuportável. Os pobres nunca mais foram os mesmos depois de
Evita. Isso era desastroso para alguns.
Eva Perón nunca foi uma política de esquerda, porém seu
surgimento já foi suficientemente ameaçador. Como tantas outras figuras da
história, sua coragem revelava a covardia dos outros. Seu inconformismo
denunciava a complacência geral diante das injustiças.
Cada um cumpre seu papel na história. Evita tem para sempre
seu lugar. Os disseminadores de ódio não podem chegar a lugar nenhum. Não há
espaço de glória para quem vive propagando o ressentimento e a mesquinharia.
Os odiadores talvez apareçam em figuras inanimadas atacando
pedra na cruz, colocando fogo nas “bruxas” em fogueiras “santas”, comemorando o
enforcamento de condenados, se explodindo em ataques suicidas, participando de
linchamentos, apedrejando as mulheres “infiéis”, comemorando o holocausto. Os
odiadores nada mais serão do que desenhos feios que contam os desastres mais
violentos da história da humanidade.
Para nossa felicidade, há também aqueles que preferem amar. Que
o Brasil encontre seu caminho de paz entre tantos odiadores que invadem
velórios, atacam bombas, invadem sites, ameaçam de morte nos fóruns de
internet, rompem amizades de anos por divergência política, rejeitam as
diferenças.
Deus nos livre da violência, da intolerância, da
intransigência e da histeria coletiva que só pode terminar em coisa ruim. Deus
nos livre daqueles que são muito corajosos e decididos para julgar os outros,
mas que se a gente olhar bem de perto, não valem sequer o pão que eles comem.
Parabéns Rafael pelo artigo. Não, não está longo o texto, pelo contrário, creio que terias muitíssimas mais coisas para escrever. Fantástica a história de Evita, quantas mais destes espíritos livres gostaria que tivéssemos. Não creio que uma pessoa ovacionada pelo povo e que durante 14 dias uma multidão se despediu dela seja algo para ignorar.
ResponderExcluirGostei muito de seu texto, Rafael! Uma analogia muito clara sobre o momento pelo qual nós passamos aqui em nosso país.
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