quarta-feira, 13 de março de 2019

Holocausto Bricolagem



Caminhava pelas ruas de Helsinki, capital da Finlândia. Dizem que esse país é campeão mundial em casos de suicídio. Talvez nem seja um bom exemplo sobre as coisas que quero falar, ainda chocado por mais um caso absurdo ocorrido na cidade de Suzano, em São Paulo. Mas, no verão em Helsinki, eu via centenas de jovens sentados num lindo gramado. Carregavam livros. Liam os livros serenamente numa tranquilidade absoluta.

Não parecia que aquele era um lugar onde se reuniam tantos jovens. O silêncio imperava. Alguns outros conversavam, mas em voz baixa, com fala lenta e suave. Aquilo me chamou muita atenção. Havia um contraste grandioso se compararmos com um lugar onde se reúnem jovens brasileiros.

Não sei se aquele lugar era necessariamente melhor ou pior, mas sei sim que era diferente. Não sei também se o furdunço dos pontos de encontro dos jovens brasileiros tem correspondência com uma suposta felicidade desses jovens, ou se é só desespero mesmo. Da mesma forma, não posso dizer se as aparentes tranquilidade e segurança dos jovens finlandeses seriam sinônimos de harmonia e felicidade, ou se igualmente seriam tão somente desespero.

Essas coisas terríveis, como os homicídios em massa, seguidos de suicídio têm ocorrido no mundo todo. É difícil explicar. Ocorreu no bairro do Realengo e em Suzano, mas também ocorreu na Noruega e em tantos episódios nos Estados Unidos, que vão se tornando corriqueiros e em breve deixarão de nos chamar a atenção.

Mas, tratando do nosso mundinho, uma observação que eu posso fazer é que aparentemente, pelo menos pelo que se vê por fora, ou quando paramos para conversar um pouco, os nossos jovens sofrem, e muito!

Isso deveria provocar reflexão nas pessoas e se tornar uma discussão central em nossa sociedade.

Estive em outras cidades do mundo e fico sempre a reparar. Vejo jovens reunidos e não percebo o mesmo desespero que vejo aqui. Tudo parece mais tranquilo. As pessoas não parecem sofrer tanto. Estava em Split, na Croácia, uma cidade linda e muito visitada no verão. Fica tomada por jovens igual a qualquer balneário brasileiro. Não via brigas, gritos, gemidos, motos estourando seus escapamentos.

Estive também em países tão subdesenvolvidos como o nosso. Muitos deles bem mais pobres. Nada se parece com o nosso desespero. Lembro-me em Cuba, conversando com a molecada. Sim, eles também querem uma calça nova, um tênis e um Playstation. Mas nada se compara com o que vemos aqui.

Nossos jovens choram. Nossos jovens sofrem. Quando a gente olha para um adolescente, os cabelos confundidos, as maquiagens fortes, a atitude hostil, o jeito de se comunicar, tudo isso poderia ser considerado apenas e tão somente irreverência própria da idade, se não fosse o olhar de desespero e tristeza, além dos números da nossa tragédia cotidiana que vitima majoritariamente a população jovem brasileira.

Esse tipo de holocausto bricolagem (massacre, faça você mesmo) tem ocorrido aqui e em outros lugares do mundo.

Mas, para além desses casos que nos chamam atenção, por serem ainda fora da normalidade, temos como pano de fundo esse dia-a-dia repleto de mortes, sejam elas ligadas a criminalidade, a violência policial e como pai de todos esses males, a necessidade de um ser melhor que o outro, o machismo, o prestígio, o orgulho, a treta, a violência cotidiana estúpida, a disputa de personalidades.

Sim, essa disputa de personalidades impera numa sociedade esvaziada de cultura, de referências, de acesso ao conhecimento, de possibilidades de realização e das transformações no mundo do trabalho, ou seja, as pessoas não têm canais por onde se projetar no mundo. Não há carreira, não há cargos, não há sequer emprego. Enquanto isso, a sociedade exige muito. Cobra status. Cobra destaque.

Esse é o ponto onde gostaria de chegar. Embora seja impossível resolver em poucas linhas tudo isso que vem acontecendo no mundo, dá pra dizer desde já que esse conjunto de características da modernidade, marcada pelo individualismo, pelo consumismo, pelo minimalismo, pela banalização da violência, pelo imediatismo, pelo materialismo, que são dados da realidade global, aqui no Brasil, essas características da modernidade trazem contornos muito mais perversos por vivermos nessa sociedade altamente verticalizada, hierarquizada, baseada no prestígio pessoal e com marcas terríveis da nossa formação escravocrata, onde alguns “escolhidos” pertencem e são reconhecidos e outros são invisibilizados e “bestializados”, pra me fazer valer do brilhante José Murilo de Carvalho.





Olhemos para a história. Não há precedentes ao longo dos séculos e milênios de indivíduos tão voltados para si e para suas vidas domésticas.

A humanidade se dedicou durante anos para entender o mundo (ou para conquistar) o mundo. Viveu para grandes projetos coletivos. Ainda que em guerra, os homens se desenvolveram vivendo em solidariedade (no sentido de cooperação e dependência) com outros homens.

Não se trata de dizer que o mundo era melhor. Não se trata aqui de mensurar se as tragédias do passado eram maiores ou menores do que as atuais. Muito provavelmente eram tragédias muito maiores, inclusive. Não se trata também de dizer que os homens nasceram para a guerra e que essa paz mentirosa os entristece.

Mas, é possível sim dizer que não há lugar para a glória.

Não há espaço para os grandes feitos.

Hoje, se compra a glória em shoppings. Os grandes feitos estão dissolvidos em migalhas do mundo corporativo, onde poucos conseguem entrar e, quando entram, recebem uma ou outra estrelinha no currículo para logo mais esses homens e mulheres serem abandonados num canto qualquer. Sem medalhas de honra, sem seus nomes sendo lembrados, sem grandes acontecimentos, sem direito a uma morte digna. Sem que suas vidas faça algum sentido.

Vivemos a era do triunfo do individualismo. Cada qual compartimentado em sua bolha, em seu submundo, em seu cercadinho.

O inferno são os outros que não são você. Aqueles que não te representam. O mundo cabe na palma da sua mão e isso é muito pouco. A solidariedade vem sendo exterminada e isso não chegará ao fim até que homens e mulheres, todos os indivíduos do mundo não tenham mais instrumento nenhum de cooperação. Até que não possamos mais encontrar nenhum projeto coletivo. Até que percamos o nosso sentido de associação, nacionalidade e classe social. E, não se iludam com os novos sentidos de pertencimento, iremos nos compartimentar até que ao final sejamos apenas nós com nós mesmos.

Só restará o ódio pelo outro. A necessidade de destruir quem não é uma continuação de você mesmo e, depois de tudo, também se autodestruir.

Não precisamos viver em guerra para que estejamos em paz com nós mesmos. Porém, precisamos muito mais do que uma vida doméstica, com feitos relativizados e buscando uma glória que se restringe a ser superior ao outro, a estar acima do próximo.

É preciso recuperar o sentido da glória coletiva. O amor pela humanidade. As realizações que trazem o bem comum.

Escapar do destino trágico da irrelevância.

Sem essas grandes lutas que fazem a vida valer à pena, estaremos condenados a estar em guerra com o próximo e superar a nossa invisibilidade e a mediocridade da nossa vida no único lugar possível que se chama absurdo.

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