terça-feira, 23 de março de 2021

Ao Presidente Duílio Monteiro Alves

 


Seu passado é uma bandeira, seu presente é uma lição.

Essa frase do Hino do Corinthians não é algo banal. Não foi colocada por um acaso no meio da letra, no meio da canção.

Quando dizemos que o passado do Corinthians é uma bandeira, damos a justa medida da importância histórica da nossa amada instituição. Não somos somente um time de futebol. Somos uma bandeira a ser hasteada nos momentos de glória e também nos momentos mais importantes da nossa história. Significa que somos um símbolo, uma representação, um instrumento, uma força. Significa que nosso passado é a maior indicação de quem somos.

Como o hino foi composto por Lauro D’Ávila em 1952, o passado ao qual ele se referia, era a fundação e formação do nosso Corinthians, fruto do esforço coletivo de seu povo que construiu o clube de futebol mais relevante, importante e original do mundo.

Certamente, entre outras coisas importantes na nossa formação, Lauro olhava para eventos como a mobilização de seus associados e torcedores para enfrentamento da crise da Gripe Espanhola, há um século. Embora a gripe não fosse necessariamente espanhola, o Corinthians sempre teve a participação efetiva da comunidade espanhola na Cidade de São Paulo que adotou esse clube como seu. Até porque, eles não tinham um grande clube como instrumento de representação àquela altura. Muitos eram chamados de sucateiros ou de carroceiros. Do mesmo modo o Corinthians foi adotado por judeus, árabes, japoneses, portugueses, retirantes nordestinos, mineiros e todos os povos que se identificavam com a formação do Corinthians. Com essa bandeira do passado que se fazia uma lição em seu presente. Hoje somos o clube dos bolivianos, haitianos, entre tantos refugiados que se equilibram nessa selva de pedra.

Mas por que se faz necessário dizer tudo isso? Para que recuperar toda essa história? O Corinthians sempre foi o clube dos vulneráveis. Foi esse povo, fundamentalmente, que construiu o Corinthians. Sempre foi missão e dever do Corinthians expressar, representar ser uma continuação da história de vida de sua gente. Aliás, essa gente corinthiana já não vive apenas nas quebradas ou bairros ricos da Cidade de São Paulo. Vive também nas quebradas e bairros ricos de diferentes cidades do Brasil e também do mundo. Bom que se diga, embora muita coisa tenha mudado, ainda estamos mais para as quebradas do que para os bairros chiques. E mesmo quem subiu na vida, guarda em seu corinthianismo a marca indelével de que carrega dentro de si a miscelânea do povo brasileiro.

Pois bem, é esse nosso povo que está morrendo já sem leitos nos hospitais. Essa nossa gente que tem chorado seus mortos, muitas vezes sem poder sequer velá-los e se despedir. Esse nosso povo que vive angustiado agora fazendo orações, pedindo para que seus amores sobrevivam a esse momento. Quem de nós não viveu a angústia de perder alguém querido? É nossa gente que está nesse momento em leitos de UTI, entubados, acordando desesperados já sem medicamentos. Poderia ser cada um de nós, deitado numa maca, imaginando que nunca mais veremos nossos familiares e nunca mais ver o nosso Coringão jogar.

A questão do enfrentamento à pandemia, não deveria sequer ser motivo de debates. Não deveria ser coisa de quem é a favor ou contra. A politização do tema foi um ato criminoso e fatal para a vida de milhares de pessoas. O enfrentamento dessa crise deveria ser, antes de tudo, técnico, não motivo de aposta política.

Seu presente é uma lição! Sim, corinthianos, mesmo convivendo com trancos e barrancos em sua história, mesmo conciliando o atraso que permeia diferentes momentos do Corinthians, sempre houve espaço para a renovação, para a transformação, para a inovação, para que o Corinthians seja efetivamente uma lição para a nossa sociedade.

A interrupção temporária dos jogos é uma necessidade sanitária. Não são apenas atletas e comissão técnica que se aglomeram e se deslocam para as partidas de futebol. A chamada “cadeia produtiva”, é composta por centenas ou até milhares de pessoas, muitas vezes precarizadas.

Sim, seres humanos que precisam trabalhar, que precisam garantir o sustento de suas famílias, não tenha dúvida que o momento é mais do que dramático. Porém, nada pode ser mais importante do que a vida. No mais, o fato de não haver programas sociais excepcionais, ou mesmo programas de apoio ao empreendedor, que possam atender o volume e necessidade desse momento, não deveria servir como uma autorização tácita para a guerra pela vida e a morte entre os seres humanos. Deveríamos perseguir a civilização. O Estado existe como figura construída pela humanidade justamente para tenhamos um instrumento coletivo, que atenda aos seus integrantes e evite a guerra de todos contra todos. Para que não estejam todos jogados à própria sorte, pois os indivíduos e suas vidas também são parte integrante de uma nação.

O Corinthians pode não ser um Estado. Mas é sim uma nação.

Em que pese a nossa situação financeira desastrosa, e tal qual as UTI do país, pré colapsada, o Corinthians deveria dar o exemplo e não jogar o campeonato nessas condições. Isso é um prejuízo histórico e uma mancha na nossa trajetória. Mais do que a questão sanitária, trata-se se um exemplo, de uma sinalização para nossa sociedade.

Ano passado fui eleito como conselheiro trienal do Sport Club Corinthians Paulista. Certamente uma grande honra que espero ser merecedor e estar à altura da responsabilidade. Justamente por isso, não creio que devo me omitir numa situação como essa.

No exercício do cargo, encaminho, respeitosamente, ao Sr. Presidente do Conselho Deliberativo e o Sr. Presidente do Sport Club Corinthians Paulista este sincero manifesto.

Embora tenha sido eleito por uma chapa de oposição, não considero que isso seja o mais relevante nesse momento. O presidente vem de uma família com importância histórica no Corinthians e tem em sua formação a chama da Democracia Corinthiana. Desejo sorte ao presidente e, sinceramente, deixo de lado qualquer tipo de disputa política e clamo ao Presidente Duílio que se sinta apoiado para tomar uma decisão que tem um peso gigantesco, algo do tamanho do peso que é ser Presidente do Corinthians. Fazer do presente do Corinthians uma lição!

Certamente não estou só nesse momento e terei outros amigos conselheiros que se juntarão a mim nesse manifesto.

Caso os jogos continuem, sugiro aos organizadores do evento que suspendam aquele minuto de silêncio “em respeito às vítimas do COVID”. Trata-se de um momento que não pode ser entendido de outra forma, senão pela marca da hipocrisia que, infelizmente, tem marcado nossa sociedade.

domingo, 21 de março de 2021

Basília, a Corinthiana



(Corinthians, uma história de amor)
Basília desceu no Metrô Artur Alvim e caminhava sozinha rumo ao estádio. Sim, o nome da mina era Basília. O pai teve a manha de exaltar seu grande redentor. Havia feito a promessa ali mesmo, na rampa do Estádio do Morumbi naquela noite mágica de 13 de outubro de 1977. Estava em absoluto êxtase. Seu pai, Ademir, queria então cravar em seu filho o nome do herói daquela noite.
- Eu juro, vou ter um filho macho que vai ser o maior corinthiano do mundo, e já vou dizendo que o nome dele será Basílio!!! Seus amigos caíram na gargalhada e brindaram com muita cerveja àquela noite onde tudo era festa.
A euforia passou, o tempo também. Ademir chegou a repensar a seriedade por colocar o nome de Basílio em seu filho homem.
Depois do êxtase da Democracia Corinthiana, pela qual Ademir era absolutamente devoto, veio a rebaixa no Parque São Jorge.
Ademir chegou a ir nas passeatas das Diretas Já. Sim, Ademir tinha seus compromissos cívicos e democráticos, mas queria mesmo era ver o Sócrates. Digamos que Ademir ficou muito mais comprometido com a democracia e as lutas por um Brasil mais justo quando ouviu, bem debaixo do palanque o Sócrates dizer:
“Caso a emenda Dante de Oliveira passe na Câmara dos Deputados e no Senado EU NÃO VOU EMBORA DO MEU PAÍS”.
Ademir chorou e berrou. Sabia que o Corinthians não estava pronto para viver sem Sócrates. Que sem ele naufragaria o projeto da Democracia Corinthiana. Na cabeça dele, e de tantos, não há tanta distinção. As coisas devem estar bem no país, em casa, com a família e com o Corinthians. Pro corinthiano, não existe terreno afetivo separado. Tudo se confunde.
Como se sabe, as Diretas não foram aprovadas, Sócrates foi para a Fiorentina, o Corinthians tentou montar um time competitivo que não deu certo, passamos anos de decadência e perdemos competitividade.
Em 1986, um ano bem xoxo para o corinthiano, Ademir recebeu a notícia no meio do ano que seria pai. Uma felicidade danada. Que alegria. De antemão, Ademir já comprou uma caixa de charutos para deixar guardada.
Meio sem convicção, contou para Márcia, sua esposa, que havia feito uma promessa no Morumbi 77.
- Porra, mas Basílio? Não tinha um nome mais bonitinho? Sei lá, tinha o Wladimir, o Luciano, Vaguinho seria até simpático, Zé Maria eu topava, Tobias ficaria vintage.
- Eu sei, amor, mas quem fez o gol foi o Basílio. Eu prometi.
A mulher tentando argumentar:
- O Palhinha. Acabou com o campeonato. Jogou muito. Qual o nome dele?
- Vanderlei.
- Porra!
Ficaram de pensar. O Ano virou e o Corinthians foi jogando mal, muito mal. A barriga crescendo e o Corinthians caindo na tabela.
Ademir estava desesperado. Havia terminado o primeiro turno do campeonato. O Corinthians acumulava apenas 14 pontos, de 38 disputados. Era um dos lanternas e potencialmente rebaixado.
Alguma coisa deveria ser feita. Estaria o mal acontecendo por conta de sua vacilação em cumprir a promessa que havia feito há quase dez anos?
O grande dia chegou. Não da vitória do Corinthians, mas do nascimento de sua filha.
- É uma menina linda!
Sim, Ademir esperava um menino. Até o padeiro da rua sabia disso. Mas quando recebeu sua filha em seus braços se desmanchou. Não que existisse a possibilidade de a menina ser rejeitada, mas acontece que nem passou na cabeça do pai ter uma filha mulher.
Ele simplesmente não esperava. Ademir chorou de emoção. Beijou sua esposa com ternura. Olhou para o quarto da maternidade todo enfeitado com as cores do Corinthians.
Antes, tinha ouvido a zoeira dos médicos, enfermeiros e outros auxiliares pela fase ruim que o Corinthians atravessava.
Mas naquele segundo, nada mais fazia sentido. Ademir explodiu de amor por sua filha. Abraçou forte novamente, beijou sua testa e conclamou:
- Seu nome é Basília!
Ela nasceu em 28 de abril de 1987. Quase dez anos depois da promessa de seu pai. No dia seguinte o Corinthians voltou a vencer depois de uma série de derrotas subsequentes. Em 1987 o Corinthians arrancou para uma campanha histórica. Os Corinthianos mais antigos certamente irão lembrar dos jogos incríveis daquele ano mágico, quando o Corinthians saiu da lanterna e foi batendo todos os adversários com incrível raça e chegou até a final do campeonato. Foi lindo!
O tempo passa! Basília amava seu nome. Converteu-se em uma corinthiana devota. Era a famosa rata de estádio. Passou boa parte da sua vida como torcedora ouvindo comentários maldosos, gracejos, ofensas, mas seguiu firme em seu propósito. Basília era uma corinthiana louca.
Ela “bem que podia” ficar no canto dela e assistir aos jogos sem provocar estranhamentos do senso comum ou, principalmente, o machismo no “seio” da torcida. Acontece que ela amava toda a atmosfera do estádio. Gostava de estar no meio da galera.
Exorcizava todos seus demônios. Gritava, pulava, entrava em absoluta catarse. O estádio também ajudava a superar a perda de seus pais que haviam morrido anos antes num acidente de automóvel.
No meio do jogo, Basília fazia suas preces. Se conectava com seus pais. Sinceramente rezava. O estádio era sua igreja.
Basília veio caminhando pela Radial Leste desde o Metrô Artur Alvim. Ah, o cheiro do pernil que perfumava o ar. Os rojões estouravam no céu e emanavam aquele cheiro gostoso de pólvora, com o qual os corinthianos já estão acostumados. Aquele vento gelado que nos faz respirar profundamente e pensar no jogo: “hoje vai dar Coringão! Vai Corinthians, meu Deus” Era o dia perfeito para o Corinthiano. Domingo a tarde, dia de clássico contra o Palmeiras.
Ela já estava acostumada a ir aos jogos sozinha. Ia sempre com seu pai. Era a melhor companhia. Depois que tudo ocorreu, ela preferia andar só. Para além da superstição, Basília tinha um motivo especial. Havia coisas em sua experiência como corinthiana que nunca foram permitidas a ela. Basília não era do tipo que aceitava proibições, ainda mais obscuras, que não lhe faziam sentido algum.
Ela seguiu caminhando até a praça do elefante comunista. Sim, no meio do caminho para o estádio, existe uma praça simpática com uma escultura de um elefante. O artista projetou a escultura de um jeito que as proeminências da tromba do elefante, com outros elementos, nos fazem enxergar uma foice e um martelo.
Bom, é o meio do caminho para o estádio. A galera para ali por perto pra tomar uma cerveja, alguns fazem um churrasquinho, outros um churrascão, os camelôs defendem um dinheirinho, tem um cantinho moqueado onde a galera que curte fuma um baseado. Se vem a larica depois tem as barracas de dog, de pernil, onde a galera toma uma maria mole, um bombeirinho ou um rabo de galo pra ficar macio.
Não foi só o estádio que mudou, a experiência do encontro urbano também mudou com as redes sociais. Se antigamente todos se encontravam no lugar geográfico da praça no entorno do estádio, hoje, em cada esquininha, cada quebrada no entorno do estádio, tem um grupo de WhatsApp que passa o domingo se confraternizando e louvando o coringão do nosso coração.
Basília entra numa padaria onde as pessoas se apertam para beber cerveja. A gritaria é imensa e estimulante. Ela fica na fila do banheiro por alguns minutos. Espera pacientemente a sua vez. Quando entra, inicia um ritual de transformação. Coloca um top bem apertado. Por cima coloca uma camiseta larga. Veste uma calça e um tênis de skatista. Coloca um jaquetão do Coringão. Veste uma touca preta e branca com linhas horizontais. Por fim, projeta sobre seu rosto uns óculos escuros bem grandões.
Os homens são distraídos. Sequer percebem que uma mulher entrou no banheiro e saiu um homem. Quando ela anda pelo bar, tromba com os transeuntes e ouve satisfeita:
- Fala moleque!
- Desculpa ae Jão!
- É nois curinthia!
Basília coloca o fone de ouvido e caminha rumo a entrada norte do estádio em Itaquera. No caminho admira os prédios grafitados da COHAB. Conclui que deveria se mudar para lá. Continua caminhando. Para num ponto estratégico. Acende um cigarro. Ela tem seus informantes, não está ali perdendo tempo. Coloca um fone de ouvido para passar o tempo. Antigamente, gostava de ouvir a cobertura esportiva. Hoje acha todas uma bosta! Então ouve um podcast sobre o Coringão, ouve um som. Mas o que ela mais gosta é da Rádio Coringão. Essa sim lhe motiva mais.
Está chegando a hora. Ela tira uma self para ver se a aparência está adequada. Se está parecendo mesmo um machinho.
Algumas dezenas de torcedores carregam o bandeirão da torcida que vai cobrir quase toda a arquibancada norte de Itaquera.
Desde menina, Basília sempre quis participar desse mutirão. Nunca foi permitido a ela. Isso seria tarefa para os homens. Queria muito carregar com suas mãos o mastro que levanta aquela linda bandeira do Corinthians. Um dia, foi encostar em uma das bandeiras e levou um esculacho terrível. Saiu da quadra chorando de tristeza.
- Caralho! Vocês não sabem a minha história, porra! Não sabem quem foi o meu pai! Eu tenho mais correria de Corinthians do que a maior parte de vocês!
Não adiantava, como resposta lhe sugeriram colaborar com as ações sociais ou da feijoada que era servida todos os sábados.
- Vai tomar no cu, caralho! Aqui é Corinthians! Esse aqui é o time da inclusão. Vocês vão ver, um dia a casa vai cair pra vocês!
Ouviu uma gargalhada geral. Saiu chorando de lá e quando chegou em casa olhou para o retrato de seu pai.
- É, seu Ademir. Se você tivesse aqui tenho certeza que iria me defender.
A verdade é que Basília vivia muito só. Além de ter perdido seus pais, não tinha conexão com o restante da família. Aí vem o drama. Por amor ao Corinthians, seu pai havia fugido de casa e perdido contato com a família. O avô de Basília era palmeirense. Nunca perdoou o filho por ser corinthiano. Dizia que seu nome, Ademir, era em homenagem ao Ademir da Guia. Era só fazer as contas, cronologicamente era impossível que o nome fosse uma homenagem. Ademir era de 1957, já o ídolo do Palmeiras começou a jogar no time rival em 1962. Não importava. Aquilo era detestável demais.
Certa vez o pai de Basília ficou vinte dias preso num quarto de castigo, até que viesse a dizer que torcia para os porcos. Em resposta, Ademir fez greve de fome e disse que iria morrer, mas jamais abandonaria o Corinthians. E assim foi, com 15 anos ele saiu de casa.
Basília ficou na espreita. Pronto! Lá estava aquela fila de homens que carregava o bandeirão. Como uma leoa observando a manada de zebras, procurou um ponto fraco no grupo. Um dos moleques apresentava mais cansaço. Ela correu rapidamente com o cigarro na boca.
“Fala truta! ”. Colocou um bom pedaço da bandeira no seu ombro direito e saiu andando, feliz da vida.
Atrás dela, havia um rapaz chamado Danilo. De começo não notou nada de estranho. Na entrada do estádio olhou com mais atenção e viu que o cara na frente dele tinha bunda de mulher.
- Ce é loco!
Falou sozinho, jogando as palavras para o ar. Ela ouviu.
Passando pela revista, aquela muvuca. Haviam as duas filas distintas, para revista masculina e revista feminina. No piloto automático, Basília caminhou rumo a fila feminina. Porém, teve um estalo dentro da mente. Olhou para os lados e percebeu que Danilo lhe observava. Ficou estática. Olhou de novo e ele continuava observando.
Preferiu manter a identidade masculina. A única coisa que ocorreu na mente de Basília foi dar uma sambadinha marota e caminhar para a fila dos homens. Quando chegou sua vez na revista, o policial brutalmente lhe arrancou a touca. Olhou com estranheza para a menina. Apalpou na altura da cintura e entre suas pernas. O policial interrompeu a revista. Basilia deu um sorriso meigo e uma piscadela. Pensou: “lá vem merda”. Mas o policial estranhamente deu um sorriso cúmplice, deu um tapa no ombro e mandou a menina entrar. Ela colocou de novo a touca saiu andando. Teve tempo de ver o policial balançando a cabeça negativamente.
Basília sabia que a melhor atitude seria de fortalecer a luta das minas. Sim, seria a melhor atitude política. Talvez o melhor não fosse se fingir de homem e reforçar aquilo tudo. Mas a atitude dela era mais que política. Basília tinha duas motivações principais. A primeira era de carregar a bandeira do Corinthians, um prazer insuperável que para ela valeria todo o esforço. O segundo era enganar aquele bando de machos.
A estranheza de Danilo só aumentava. Quando a touca foi arrancada percebeu que o cabelo era muito delicado. Basília não usava cabelos longos, mas era um corte bonito. Sem contar que tinha uma nuca incrivelmente sensual.
Normalmente, quando realiza esse tipo de aventuras, Basília vai até o banheiro e desfaz a transformação. Acontece que o jogo já ia começar. No mais, ela estava gostando de estar daquele jeito. Estava absolutamente emocionada com tudo.
O jogo começa. Bandeirão que sobe. “É sangue no olho, é tapa na orelha, é o jogo da vida, o Corinthians não é de brincadeira”. A torcida gritava, a Arena vibrava. Era o coringão em campo. O mundo aparentemente havia parado. Nada mais importava.
Danilo olhou três fileiras abaixo e reconheceu aquela bunda. Coringão no contra-ataque, bola cruzada na área, {é gol} cabeçada, na trave. Basília se vira para trás e grita: “puta que pariu, não grita gol, caralho”.
Ah, maluco. Esse cara é uma mina, pensou. No intervalo ele foi trocar ideia:
- Ow, mano, você é mina? Pensei que fosse homem.
- Faz diferença? Ela remendou.
-Ué, lógico. Pra mim faz.
- Pois é, menino. Pra mim não faz.
- Ih, caralho.
- Por que, veio me cobrar que não posso carregar a bandeira?
- Por mim...
- Você não liga?
- Eu mesmo não to nem aí, se quer fazer força pode fazer. Mas na hora que o chicote estrala e o bicho pega vai apanhar junto. Pior, só vai atrapalhar.
- Ah, mano dá licença. Eu não corro de treta não.
- Não corre mas apanha hahahahaha
- Pior que é ahahhaha
Ficaram alguns segundos se olhando. Ele tirou suavemente os óculos dela. Pode perceber como Basília era linda. Os traços finos pareciam ter sido desenhados com delicadeza. Contrastava com aquele personagem bruto da arquibancada.
Ela toma os óculos de volta e diz:
- Mano, bora lá que vai começar o segundo tempo. Estádio não é lugar de ficar paquerando. Dá uma puta zica.
- Ah, então vou assistir aqui com você, posso?
- Não, porque dá azar.
- Como assim?
- Não pode mudar de lugar que dá zica. Eu também tenho que assistir sozinha porque senão dá zica. Sozinha não, com meu pai.
- E cadê seu pai.
Em um instante seus olhos enchem de lágrimas. Ela tranca a garganta e aponta para o céu.
- Beleza, vou lá então. Muito prazer, Danilo.
- Basília!
- Basília? Que da hora, mano. Muito louco.
- Tá, tá, vai logo senão vai dar zica.
- Falou! Puta mina supersticiosa.
Quando Danilo voltou para o lugar onde estava saiu um gol dos porcos. Foi automático. Danilo olhou para baixo e viu Basília furiosa olhando bem direto nos seus olhos, quase que jurando o moleque de morte. Danilo pensou que se o Corinthians perdesse ele estaria fodido.
Mas ainda era o Corinthians em campo. A torcida não esmoreceu. Continuou apoiando. Bola na direita, Romero carrega ela no ataque, fez a finta, entrou na grande área, vai chutar, foi derrubado, é pênalti. O juiz aponta para a marca de cal. Partiu Jô para a cobrança, é gol! Fiel vibrando. O estádio parecia tremer. Vai Corinthians! Lance seguinte, Fagner entra em profundidade, deixa a bola escapar um pouco. Quando parecia que a bola escaparia para a linha de fundo, Fagner dá um carrinho e cruza a bola para trás. Surpreendido, o zagueiro do Palmeiras erra a passada. A bola bate em seu calcanhar direito e sobra nos pés de Romarinho que executa. Puta que pariu foi gol! Ahhhh! Gritos e lágrimas! Danilo olhava para o céu e agradecia, quando de repente recebe um abraço voador. Basília, no calor da mais pura emoção o abraçou. Os dois arregalaram os olhos e olhavam bem fundo um para o outro. Era uma simbiose. Sentiram o hálito um do outro bem profundamente. Sentiram um imenso prazer. Não desejariam de forma nenhuma estar em outro lugar.
O jogo acabou e a Fiel saia do estádio em festa. Tinha pizza por dez contos, a molecada comprava, cada um arrancava um pedaço com a mão. Estava uma delícia. Tinha cerveja gelada, faixas decorativas “Caiu em Itaquera já era”. A mais vendida dizia: “O Palmeiras não tem mundial”. Rojões estouravam no céu. Os pais carregavam seus filhos nos ombros. Tudo era mágico. O dólar iria baixar, a inflação cair, os empregos aumentarem. Sim, o otimismo voltava a existir como antigamente. Como é bom ser corinthiano!
Danilo alcançou Basília no caminho, já com duas cervejas nas mãos.
- Ow Corinthians, toma uma comigo?
- Valeu, Corinthians, bora comer um pernil?
- Ce é louco, com certeza.
Ficaram um bom tempo em silêncio. Devoraram o pernil, o vinagrete caia na roupa, as mãos sujas de maionese. Um ajudava o outro a se limpar num gesto já carregado de ternura.
Basília se antecipou:
- Tia, me dá um sanduiche de calabresa com bastante cebola?
- Que dá hora, você come.
- Vai tomar no seu cu hahahahah
- Ah, mano. É da hora. Tinha uma mina que não comia direito. Eu tinha vergonha de pedir mais um lanche e vivia com fome.
- Não me enche o saco que eu peço o terceiro.
- Por mim.... Tia dá mais um pra mim também, mas sem cebola.
- Ihhhh, que história é essa de sem cebola. Puta frescura. Tia, põe cebola no dele, porque se for pra beijar, os dois tem que estar com bafo. Aqui é democracia corinthiana.
Saíram os dois satisfeitos no caminho de volta pra casa. Chegando no Metrô ele perguntou:
- Qual estação você desce?
- Ah, mano. Você não vai me fazer essa pergunta hoje.
- Ué, e o que tem a ver?
- Não vou falar!
- Tem medo de sequestro.
- Que medo de sequestro. Ia até te convidar pra tomar uma na minha casa. Faz assim, qual estação você desce.
- Eu deixei meu carro na Penha, mas moro em Jaçanã.
- Ah, tipo o Adoniran.
- Com certeza, Adoniran era coringão. Mas dizem que nunca pisou no Jaça aahhahah.
- Então, eu moro na Pompeia.
- Ah, agora eu entendi porque não quer falar o nome da estação. É Palmeiras-Barra Funda hahahah.
- Cala boca, moleque do caralho. Precisa falar o nome dos caras.
- Pior você que mora ao lado do chiqueiro. Não tinha um lugar melhor pra morar?
- O apartamento era herança do meu pai, quer dizer, era herança do meu avô também. Se quiser comprar eu te vendo, garoto. Quer ir lá tomar a última comigo ou tá com medinho?
- Faz assim, descemos aqui na Penha e vamos de carro até aquele bairro porco.
- Fechou.
- Fechou.
Antes de entrar no apartamento de Basília, Danilo tirou os sapatos. Entrou pisando em ovos. Achou tudo muito bonito, exceto pela vista do estádio rival da sacada do apartamento.
Ela voltou com duas latinhas de cerveja.
Já não vestia mais a roupa de skatista. Voltou para a sala com um short mínimo que revelava suas belíssimas pernas. Manteve ainda a camisa do jogo.
Danilo deu um gole farto na cerveja. Olhou nos olhos dela e mandou para dentro outro gole generoso. Segurou o rosto de Basília e deu um beijo largo, molhado, gélido ainda pela cerveja. Os dois se excitaram instantaneamente.
Basília se afastou por um segundo. Mostrou um baseado para ele e cantou:
- É um raro prazer, sabor de emoção, fumar maconha e torcer pro coringão.
- Mas não abuse que faz mal pro coração (e pro pulmão), respondeu Danilo.
- Mano, se te incomoda eu não acendo, ok?
- Relaxa, eu sou mais ou menos careta. Não sou totalmente.
- Que menino bonitinho.
- Menino? Acho que sou mais velho que você.
- Quantos anos você tem?
- 32, respondeu Danilo.
- Sou mais velha, 34.
- Que se foda.
- É, que se foda.
Danilo deu um trago breve e atrapalhado no baseado. Tossiu muito. Logo parou.
Basília preferiu parar também.
Voltaram a se beijar. A pele dos dois parecia ferver. Basília durante muito tempo foi mais inibida. O tempo estava lhe ensinando a aproveitar mais e melhor seu próprio corpo e se distanciar da moral para poder aproveitar o sexo da melhor forma. A morte de seus pais foi um divisor de águas. Tudo nessa vida parece ser muito breve. Vivemos num permanente agora ou nunca. A urgência é a tônica da vida. Por fim, não estava mais disposta a prestar conta de suas atitudes para homem nenhum. A vida de Basília era ela com ela mesma.
Foram para o sofá. Seus órgãos sexuais e zonas erógenas estavam interditados por pedaços de pano. Ela se levantou rapidamente:
- Corinthians, não tá dando certo nós dois aqui. Já que vamos continuar eu vou tomar um banho.
Danilo segurou ela pelo braço. Arrancou a camisa do Corinthians que ela vestia. Olhou para seus seios firmes. Eram incrivelmente lindos. Olhou mais uma vez. Por instinto, iria lamber seus mamilos. Olhou novamente para a camisa. Beijou primeiro o distintivo do coringão olhando bem no fundo dos olhos de Basília, sussurrando:
- Vai Corinthians!
Abriu a boca o tanto quanto podia e se deliciou por alguns instantes.
- É sério, eu estava no estádio. Eu estou fedida. Suei o dia inteiro.
Danilo pegou novamente a camisa em suas mãos. Procurou a manga perto das axilas. Cheirou profundamente. Pegou novamente Basília pelos braços e cheirou com gosto suas axilas. Deu uma leve mordida.
Basília se entregou. Abriu mão da vaidade. Se deixou levar.
{continua}

quarta-feira, 13 de março de 2019

Holocausto Bricolagem



Caminhava pelas ruas de Helsinki, capital da Finlândia. Dizem que esse país é campeão mundial em casos de suicídio. Talvez nem seja um bom exemplo sobre as coisas que quero falar, ainda chocado por mais um caso absurdo ocorrido na cidade de Suzano, em São Paulo. Mas, no verão em Helsinki, eu via centenas de jovens sentados num lindo gramado. Carregavam livros. Liam os livros serenamente numa tranquilidade absoluta.

Não parecia que aquele era um lugar onde se reuniam tantos jovens. O silêncio imperava. Alguns outros conversavam, mas em voz baixa, com fala lenta e suave. Aquilo me chamou muita atenção. Havia um contraste grandioso se compararmos com um lugar onde se reúnem jovens brasileiros.

Não sei se aquele lugar era necessariamente melhor ou pior, mas sei sim que era diferente. Não sei também se o furdunço dos pontos de encontro dos jovens brasileiros tem correspondência com uma suposta felicidade desses jovens, ou se é só desespero mesmo. Da mesma forma, não posso dizer se as aparentes tranquilidade e segurança dos jovens finlandeses seriam sinônimos de harmonia e felicidade, ou se igualmente seriam tão somente desespero.

Essas coisas terríveis, como os homicídios em massa, seguidos de suicídio têm ocorrido no mundo todo. É difícil explicar. Ocorreu no bairro do Realengo e em Suzano, mas também ocorreu na Noruega e em tantos episódios nos Estados Unidos, que vão se tornando corriqueiros e em breve deixarão de nos chamar a atenção.

Mas, tratando do nosso mundinho, uma observação que eu posso fazer é que aparentemente, pelo menos pelo que se vê por fora, ou quando paramos para conversar um pouco, os nossos jovens sofrem, e muito!

Isso deveria provocar reflexão nas pessoas e se tornar uma discussão central em nossa sociedade.

Estive em outras cidades do mundo e fico sempre a reparar. Vejo jovens reunidos e não percebo o mesmo desespero que vejo aqui. Tudo parece mais tranquilo. As pessoas não parecem sofrer tanto. Estava em Split, na Croácia, uma cidade linda e muito visitada no verão. Fica tomada por jovens igual a qualquer balneário brasileiro. Não via brigas, gritos, gemidos, motos estourando seus escapamentos.

Estive também em países tão subdesenvolvidos como o nosso. Muitos deles bem mais pobres. Nada se parece com o nosso desespero. Lembro-me em Cuba, conversando com a molecada. Sim, eles também querem uma calça nova, um tênis e um Playstation. Mas nada se compara com o que vemos aqui.

Nossos jovens choram. Nossos jovens sofrem. Quando a gente olha para um adolescente, os cabelos confundidos, as maquiagens fortes, a atitude hostil, o jeito de se comunicar, tudo isso poderia ser considerado apenas e tão somente irreverência própria da idade, se não fosse o olhar de desespero e tristeza, além dos números da nossa tragédia cotidiana que vitima majoritariamente a população jovem brasileira.

Esse tipo de holocausto bricolagem (massacre, faça você mesmo) tem ocorrido aqui e em outros lugares do mundo.

Mas, para além desses casos que nos chamam atenção, por serem ainda fora da normalidade, temos como pano de fundo esse dia-a-dia repleto de mortes, sejam elas ligadas a criminalidade, a violência policial e como pai de todos esses males, a necessidade de um ser melhor que o outro, o machismo, o prestígio, o orgulho, a treta, a violência cotidiana estúpida, a disputa de personalidades.

Sim, essa disputa de personalidades impera numa sociedade esvaziada de cultura, de referências, de acesso ao conhecimento, de possibilidades de realização e das transformações no mundo do trabalho, ou seja, as pessoas não têm canais por onde se projetar no mundo. Não há carreira, não há cargos, não há sequer emprego. Enquanto isso, a sociedade exige muito. Cobra status. Cobra destaque.

Esse é o ponto onde gostaria de chegar. Embora seja impossível resolver em poucas linhas tudo isso que vem acontecendo no mundo, dá pra dizer desde já que esse conjunto de características da modernidade, marcada pelo individualismo, pelo consumismo, pelo minimalismo, pela banalização da violência, pelo imediatismo, pelo materialismo, que são dados da realidade global, aqui no Brasil, essas características da modernidade trazem contornos muito mais perversos por vivermos nessa sociedade altamente verticalizada, hierarquizada, baseada no prestígio pessoal e com marcas terríveis da nossa formação escravocrata, onde alguns “escolhidos” pertencem e são reconhecidos e outros são invisibilizados e “bestializados”, pra me fazer valer do brilhante José Murilo de Carvalho.





Olhemos para a história. Não há precedentes ao longo dos séculos e milênios de indivíduos tão voltados para si e para suas vidas domésticas.

A humanidade se dedicou durante anos para entender o mundo (ou para conquistar) o mundo. Viveu para grandes projetos coletivos. Ainda que em guerra, os homens se desenvolveram vivendo em solidariedade (no sentido de cooperação e dependência) com outros homens.

Não se trata de dizer que o mundo era melhor. Não se trata aqui de mensurar se as tragédias do passado eram maiores ou menores do que as atuais. Muito provavelmente eram tragédias muito maiores, inclusive. Não se trata também de dizer que os homens nasceram para a guerra e que essa paz mentirosa os entristece.

Mas, é possível sim dizer que não há lugar para a glória.

Não há espaço para os grandes feitos.

Hoje, se compra a glória em shoppings. Os grandes feitos estão dissolvidos em migalhas do mundo corporativo, onde poucos conseguem entrar e, quando entram, recebem uma ou outra estrelinha no currículo para logo mais esses homens e mulheres serem abandonados num canto qualquer. Sem medalhas de honra, sem seus nomes sendo lembrados, sem grandes acontecimentos, sem direito a uma morte digna. Sem que suas vidas faça algum sentido.

Vivemos a era do triunfo do individualismo. Cada qual compartimentado em sua bolha, em seu submundo, em seu cercadinho.

O inferno são os outros que não são você. Aqueles que não te representam. O mundo cabe na palma da sua mão e isso é muito pouco. A solidariedade vem sendo exterminada e isso não chegará ao fim até que homens e mulheres, todos os indivíduos do mundo não tenham mais instrumento nenhum de cooperação. Até que não possamos mais encontrar nenhum projeto coletivo. Até que percamos o nosso sentido de associação, nacionalidade e classe social. E, não se iludam com os novos sentidos de pertencimento, iremos nos compartimentar até que ao final sejamos apenas nós com nós mesmos.

Só restará o ódio pelo outro. A necessidade de destruir quem não é uma continuação de você mesmo e, depois de tudo, também se autodestruir.

Não precisamos viver em guerra para que estejamos em paz com nós mesmos. Porém, precisamos muito mais do que uma vida doméstica, com feitos relativizados e buscando uma glória que se restringe a ser superior ao outro, a estar acima do próximo.

É preciso recuperar o sentido da glória coletiva. O amor pela humanidade. As realizações que trazem o bem comum.

Escapar do destino trágico da irrelevância.

Sem essas grandes lutas que fazem a vida valer à pena, estaremos condenados a estar em guerra com o próximo e superar a nossa invisibilidade e a mediocridade da nossa vida no único lugar possível que se chama absurdo.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

É pra torcer pelo Brasil!



Se a gente dependesse de bom governo ou de bom momento na política para torcer pelo Brasil,  talvez não seria possível ter comemorado nenhuma Copa do Mundo.

Se fosse para depender de governo bom para sambar ou pular o carnaval, estaríamos com os pés atrofiados.

Se tristeza e ressentimentos levassem à revolução, já teríamos resolvido todos os nossos problemas de uns anos pra cá.

A verdade é que a alegria do povo brasileiro sempre foi muito mais sinal de resistência do que de submissão.

A nossa irreverência sempre foi um ato, ainda que inconsciente, de rebeldia e destituição de reconhecimento do poder estabelecido. Uma arma sutil - e portanto possível de ser usada - para enfrentamento e desconstrução da opressão.

O futebol foi, ao longo dos anos, um instrumento de projeção da criatividade, da imaginação e da inteligência do povo brasileiro, para além do gosto pela cópia e da subordinação cultural das nossas elites.

Foi o nosso povo que inventou um novo jeito de se jogar esse jogo que é uma metáfora da vida. Foi o povo pobre que ganhou cinco Copas do Mundo. A Copa é mais do que um evento esportivo, mas um acontecimento da humanidade, que traz para um espaço lúdico a disputa inexorável do sistema interestatal, que ganha no jogo, um novo sentido e transforma, de alguma forma, a rivalidade em confraternização.

Foi o futebol que derrubou as teorias biológicas e racistas sobre o subdesenvolvimento do Brasil, revelando atletas negros vencedores, capazes e inteligentes, entre eles o maior da história, admirado pelo mundo todo.

Claro que o futebol não acabou com o racismo. Claro que o futebol também acaba abrigando o racismo e todo tipo de estupidez que está na sociedade. Mas certamente foi um instrumento poderoso, pois no jogo jogado, com regras comuns e iguais, além de condições naturais equivalentes de disputa, toda a potencialidade física, mental, cultural e espiritual do povo negro pode ser apresentada em sua magnitude, como felizmente já se apresenta em diferentes áreas, superando na raça o racismo institucional.

O futebol também sempre foi um elemento poderoso que ajudou muito o Brasil no âmbito das relações internacionais. E continua ajudando.

Quando a gente viaja pelo mundo percebe o fascínio que despertamos em outros povos. Mesmo com tanta gente insistindo em fazer com que nos vejamos de maneira degenerativa,  somos sim um lugar especial no mundo. Despertamos sorrisos e simpatia. Quando as pessoas ouvem que somos do Brasil, parece ser diferente de dizer que somos de qualquer outro lugar no planeta. A reação imediata é um sorriso, um espanto, um sinal de admiração. Uma musiquinha e uma dancinha pra te cumprimentar. É maravilhoso isso.

Com todas as dificuldades que vivemos, ainda somos um povo que tem uma missão espiritual a ser cumprida com nossos irmãos pelo mundo .

Difícil acreditar nisso diante da forma tão ruim em que estamos vibrando. Com tanta energia negativa rolando.

Pois então que o futebol cumpra mais esse papel pelo Brasil.

Exorcisemos todos os nossos fantasmas a cada gol. Deixemos os deuses do futebol fazerem sua parte.
Deixemos de odiar uns aos outros.

Há quem se preocupe se uma vitória do Brasil venha a ajudar politicamente determinada força política .

Há quem não queira usar a camisa amarelinha, que desperta tanto fascínio, por conta das náuseas políticas dos últimos tempos.

Ora, não é por acaso que nos jogos de guerra, o símbolo da vitória de um adversário sobre o outro seja exatamente a bandeira. Quem leva a bandeira ganha o jogo.

Entregar de bandeja nossa bandeira e nossas cores porque estamos de mal do resto da sociedade é uma atitude no mínimo infantil e tola.

A bandeira é nossa. Não devemos abrir mão dela.

As cores lindas do Brasil são também as cores da nossa gente.

Os símbolos tem poder. Quem não entende isso tem que voltar cinco casas no tabuleiro.

Não faz sentido insistirmos em ser uma parte fragmentada quando somos nós o povo brasileiro.

Tem coisas que a puberdade política não permite entender. Ou pela imaturidade, precocidade e descontrole de reações orgânicas, ou porque as posições estéticas acabam sendo mais apreciadas do que os compromissos de transformação.

O nacionalismo pode até ser coisa da direita na Europa ou nos EUA. Mas no Brasil e na América Latina sempre foi pauta dos progressistas. Até porque a direita, por esses lados de cá, nunca foi nacionalista, foi na verdade sempre entreguista.

É só olhar para a história. Vocês não gostam do Eduardo Galeano em seu livro tão importante "As veias abertas da América Latina"? Quem são os personagens do livro senão líderes nacionais e progressistas?

Na linda copa de 1970 muita gente perdeu a festa porque era contra o governo.

Ficaram distantes do povo e no final não resolveu nada. É só olhar para a história.

O que derrotou a ditadura foi a transformação na correlação de forças na sociedade. Foi a luta institucionalizada em todos os espaços possíveis. A ditadura caiu com o povo na rua vestindo verde e amarelo, levantando a bandeira do Brasil.

Quem odeia o Brasil, de verdade, são aqueles que querem entregar nossas riquezas de bandeja e a alma do nosso povo, deixando ele triste e subordinado ao ponto de ser escravizado.

Estamos cansados de tanto ódio. O Brasil nunca foi assim. O povo brasileiro nunca foi amargo desse jeito que ficou. E, estejam certos, essa amargura não vai transformar porra nenhuma. Só vai levar a mais desgraça e escolhas estúpidas.

Temos que voltar a acreditar em nós mesmos. Se o futebol é só uma ilusão, então que seja!

Que tenhamos um pouco de alegria e alento. Que as vitórias do Brasil sejam elementos de congraçamento. Estamos fartos da depressão nacional.

Os momentos em que o Brasil foi mais forte, certamente foram aqueles em que estivemos em maior harmonia com nossos elementos de brasilidade. Os piores foram aqueles em que sentimos vergonha de nós mesmos. Talvez por isso que forças terríveis trabalhem duro  para nos desestabilizar e nos deixar de joelhos.

Será lindo ver o Brasil ser campeão. Se reencontrar. Se amar. Ganhar da Alemanha dando um vareio de bola. Dando olé no final do jogo. Será um sonho lindo.

Vamos torcer com gosto. Torcer pela amarelinha e diversificá-la com todas as cores e amores do nosso Brasil. E vamos cair no samba!

quarta-feira, 2 de maio de 2018

A Cidade que ferve. A cidade que desaba

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Fui algumas vezes ao prédio que desabou na madrugada de hoje no centro de São Paulo. Isso foi na época do meu primeiro emprego como office-boy, quando ali funcionava a sede da Polícia Federal.
Depois, a PF se mudou para a Lapa, em instalações mais modernas e o prédio ficou ali, fantasmagórico e horroroso, como tantos outros na região central da cidade.
Os movimentos por moradia ainda fizeram um uso social daquele edifício que certamente ficaria desabitado por décadas, talvez para sempre. 
É muito duro não ter um lugar no mundo para viver dignamente com sua família, vendo tantos arranha céus carrancudos, tristes, inadequados, simplesmente deixados pra trás. A cara de São Paulo.
Não deixa de ser simbólico. A casa que foi usada e consumida pela Polícia Federal, até que ela vestisse uma nova roupa, justamente para representar o "novo", se degenerando a céu aberto e a olhos vistos, até desabar os seus dejetos na calada da noite no centro da cidade.
A queda desse edifício é a cara da degeneração da cidade de São Paulo e símbolo da canibalização da especulação imobiliária.
O centro da cidade foi deixado pra trás, mesmo com sua bela infraestrutura urbana, e a especulação foi atrás de novos espaços de higienização, onde tudo parece novo, moderno, branco, bem vestido, espelhado. Na verdade, esse "novo" é o que há de mais velho no nosso capitalismo predatório que precariza a exploração, esgota recursos, infertiliza os solos, mata a terra. Depois, parte para outra, deixando o que está "velho" para trás e sai em busca de um outro "novo", sempre construindo camarotes vipes na cidade, espaços de exclusividade, onde São Paulo aparenta ser só de pessoas incluídas, com empresas que tem suas atividades econômicas voltadas para o "futuro" que vai sempre ao encontro do passado.
E deixamos para trás nossos prédios e nossos zumbis, caminhando errantes pelas ruas, sem saber direito para onde ir. Tentando arrumar um bico, um troco, uma boia, uma pedra. Até serem completamente tragados e triturados pelo sistema. Até ficarem andando no meio do asfalto por entre os carros, talvez para serem notados, talvez para que tenham a certeza de que ainda estão vivos, talvez para roubar à força algum nível de atenção. 
E assim é. Ficam de pé, tentando existir até o momento que pegam fogo e desmoronam de uma vez por todas. Para sempre.
O Centro se tornou o lugar de quem ficou para trás. Pessoas, prédios, empresas que vendem sei lá o quê.
Quem tem salvo o centro são as pessoas que insistem em existir por entre os escombros. São os skatistas que fazem seus malabarismos e tiram suas fotos em cenários apocalípticos. São os "alternativos", nome que o cidadão médio paulistano deu para quem justamente se recusa a incorporar os códigos do cidadão médio. São aqueles que conseguem enxergar a beleza nesse monumental que ficou para trás. Que aprendeu a ser feliz por entre o concreto. No que ficou para trás. No que já foi um dia. É como viver num cenário de filme de ficção que se passa pós guerra nuclear. Quem salva o centro são os gays que deixam os subúrbios, com seus estigmas e preconceitos e constróem uma nova vida onde ninguém liga muito pra quem você é ou o que você faz. 
São também artistas. É gente que gosta de cultura. Quem gosta de andar a pé. São espíritos rebeldes que ocuparam o espaço público que foi deixado pra trás, mas que, tal qual fazem com "os sem-teto", a ocupação se torna um problema. É como se a cidade viesse a dizer: "não é nosso, e não será de mais ninguém".
O centro está lá, fantasmagórico. Terra de zumbis. Até que as pessoas abracem e tomem para si, ocupando com seus sambas,skates, encontros, máquinas fotográficas, suas músicas, flores, protestos, intervenções artísticas e, pronto! Vem logo a patrulha de choque para atacar bombas e gás de pimenta, para deixar tudo como sempre esteve. Sob controle. Sem ameaças. Apenas com as almas atormentadas e já inofensivas. 
O que será, que será? que andam combinando no breu das tocas?
O desabamento do edifício, infelizmente, não é nada de novo nessa cidade.
Mais uma saudosa maloca que ruiu. Mais um despejo na favela. Mais um barracão que se foi com a sua cama.
A única diferença é que de Adoniram para Mano Brown muita coisa mudou.
A doçura se foi.
Se o protesto presente nas canções do Adoniram escolhiam a irreverência e as verdades eram ditas de maneira poética, disfarçadas de conformismos e da esperança de que "Deus dê o frio, conforme o cobertor", na obra do Mano Brown, "Deus é uma nota de cem" e não há mais tempo nem espaço para as sentenças colaterais. Talvez estejamos caminhando para o confronto que o Brasil sempre tardou e empurrou com a barriga.
Não há mais doçura. Tudo está incendiando e prestes a desabar!
Vivemos sobre um paiol.