Como o Corinthians pode salvar o Brasil
É possível – apenas possível – que eu tenha tido uma ideia original. E ela envolve o Corinthians. O Corinthians como instrumento de resgate social.
O título desse texto é ridículo porque é exagerado, eu sei, mas sou do time de Nelson Rodrigues e de Cazuza, e o exagero não me restringe, ao contrário, me encanta.
Li um texto ontem do sociólogo Rafael Castilho (link está no final desse meu ramirrâmi), escutei outros pontos de vista na programação da Rádio Coringão (yes!) e me coloquei a pensar.
Usualmente, nada de muito bom vem desses momentos em que me entrego ao devaneio, mas quem sabe agora eu esteja conseguindomirar algo nuevo, como sugeriu o explorador espanhol Juan Ponce de Leon.
Partamos das seguintes premissas:
- O Corinthians é o time do povo
- O Corinthians não é um time que tem uma torcida, mas uma torcida que tem um time.
Acho que todo o corintiano vai concordar com ambas.
E coloco nesse grupo os corintianos irados com as torcidas organizadas, como meu amigo Mauricio Savarese, e os corintianos irados com a pasmaceira do elenco, como meu colega virtual Bruno Momezzo.
Partamos de um segundo ambiente de verdades das quais fica difícil duvidar:
1. O Brasil vive um período instável — social, política e economicamente.
Depois de anos de crescimento econômico, com 40 milhões de brasileiros saindo da zona de pobreza, o cenário agora é movediço.
Até aí, acho também natural, e cito o pensador francês Alexis de Tocqueville: “A revolta vem não quando tudo vai mal, mas quando um período de progresso, durante o qual crescem as expectativas, é bruscamente interrompido” – o pensamento serve para o Brasil e para o Corinthians (me perdoem as citações, mas se outros definiram melhor do que sou capaz, por que não usar?).
Mas o fato é que esse trem chamado Brasil parece estar querendo perder o controle, e a aparente iminência de um descarrilamento faz os malucos se colocarem a alardear preconceitos e ignorância.
Hoje as redes sociais compartilhavam coisas como o comentário de alguém do SBT que tem sobrenome de prato típico húngaro e que concordava com o linchamento de um menino no Rio, o texto de deputado homofóbico que sugeria a justiça com as próprias mãos como caminho para acabar com a criminalidade no Brasil, e a ação da PM paulista, que ameaçou com porrada usuário de metrô que tentava escapar do calor sufocante dos trens parados, outra vez dando mostras de que está a serviço do poder e não o povo etc etc etc.
Verdade segunda:
2. A cada dia estamos mais separados e mais reprimidos.
Ver uma enorme onda de cidadãos chegar ao patamar de classe média apavorou aqueles que estão no comando. Dividir o assento do avião com a empregada, que agora é protegida por leis trabalhistas iguais às da patroa, deixou a elite em paranoia delirante.
E, para os que estão no poder, a única forma de se proteger da ameaça de ter que se misturar a essa gente estranha é distribuindo medo e repressão; a violência entendida – e noticiada –apenas quando veste trajes de criminalidade e delinquência, mas nunca quando usa suas roupas de gala, as que revelam que agressão é qualquer violação física ou moral feita contra a natureza de alguém, aquela cujo requinte de crueldade é inigualável porque não reconhece a humanidade do outro.
É o instante em que nos colocamos em diferentes patamares: “ele, criminoso e delinquente”; “eu, homem bom e honesto”, esquecendo que nada do que é humano pode nos ser alheio (Terêncio). Sorry, pessoal, mas eu preciso dar o crédito ou fica parecendo que esse pensamento brilhante é meu, e como já foi estabelecido eu não sou brilhante).
Se você chegou até aqui, continue comigo nesse pensamento.
Portanto, o que vemos hoje é o alargamento da distância entre todos nós.
O abismo se acentua entre classes sociais, entre raças, entre sexualidades, entre gêneros, entre a opiniões políticas, religiosas, futebolísticas e até clubísticas — que não devem nunca ser desdenhadas porque o futebol é um dos traços mais fortes de nossa identidade cultural. É o que somos enquanto povo, e por isso tem a capacidade de funcionar como um espelho do que temos de melhor e do que temos de pior.
Aí vem o Corinthians.
O Corinthians tem importante história em batalhas sociais e políticas. Todos sabem, não vou esmiuçar. E, mais uma vez, está há alguns dias como locomotiva desse trem de violência social que pode descarrilar a qualquer instante.
A imprensa pede para que o time use sua força social para colocar um basta nisso. Pede que não entrem em campo, que façam de seu CT uma fortaleza, que coloquem de uma vez por todas, e para a felicidade geral da nação, o torcedor violento em seu lugar (e não há como separar o que aconteceu no CT do Corinthians na semana passada, um tipo de violência nunca antes vista dentro de um clube com histórico de violências, da bagunça social que estamos vivendo)
Tendo a concordar com esse raciocínio, e até escrevi um texto a respeito aqui nesse espaço. Mas, como Montaigne, também tendo a me contradizer em larga escala porque contenho multidões. Então vamos lá.
O corintiano sabe que o lugar do povo é misturado ao time. O Corinthians, enquanto abstração social — que é mais do que entidade e clube e sociedade esportiva — entende que o lugar do povo é misturado ao time. Então, por que não aproveitar a oportunidade e fazer justamente o oposto: tirar as grades. As mesmas que protegem, mas também limitam.
Abram o CT: deixem o povo entrar. Misturemo-nos em uma grande comunhão clubística para além do estádio.
Vamos mostrar que o que nos separa é a discriminação, e que a violência vem dessa distância e da desigualdade.
Hoje, o torcedor se sente afastado do time, e os jogadores se sentem ameaçados pelo torcedor, talvez justamente porque o torcedor esteja se sentindo afastado do time (e aqui falo em afastamento conceitual também, já que a torcida tem a impressão de que o atual elenco não entende a filosofia por trás do ‘Aqui é Corinthians’ – e o Rafael Castilho tem outro texto brilhante para isso cujo link está aí embaixo –, etc e tal).
Trata-se de um círculo nocivo e predatório que pode ser interrompido de dois jeitos: no muque e na repressão, ou na comunhão e no ajuntamento.
A comunhão é uma atitude de risco, mas os ingleses fizeram isso depois que especialistas em hooliganismo entenderam que quando você trata o torcedor como um bicho ele tende a se comportar como um bicho. E por lá deu certo.
Claro que a ação passaria por um pacto entre a torcida, time e diretoria. Um pacto que tem o Corinthians como fiador moral. Difícil pensar em fiador moral mais caro para o corintiano.
Esqueçam pedir fim de torcida organizada. Não vai acontecer. E o Rafael Castilho matou a parada ontem quando disse que uma torcida se organiza pelos mesmos motivos que jogadores se organizam: coletivamente fica mais fácil reivindicar, ser ouvido e atendido.
Claro também que eu entendo que coletivamente fica mais fácil ser o “macho-alfa” que puxa a pancadaria, mas há na história muitos exemplos de movimentos que conseguiram calar e aquietar e controlar essa turma de broncos em nome de uma causa comum.
Por que não? Por que não tentar? Eu também não sei se seria factível ou se é sugestão inteligente (não sou das mentes mais brilhantes), estou aqui apenas tentando refletir.
Pode dar errado, óbvio, mas pode dar bastante certo, e ser pioneiro.
Há, naturalmente, vândalos-torcedores, como há vândalos-jogadores e vândalos-banqueiros e vândalos-advogados etc etc etc. Mas se os vândalos-torcedores fossem a maioria eles já teriam tomado o clube, e a cidade, por refém.
Então, enquanto o clube pensa em como afastar o torcedor de suas cercanias, eu sugiro que se faça justamente o contrário: abram as portas. Que o clube se estruture para fazer isso, sei lá como.
Que a diretoria mostre para além de campanhas publicitárias que o Corinthians é de fato o time do povo. Deixem que o torcedor se manifeste democraticamente; vamos mostrar a ele, aliás, o que exatamente significa uma manifestação democrática. Vamos abraçar o torcedor, escutá-lo em todos os ambientes possíveis, aproximá-lo do elenco, e não dar as costas para ele.
E puna-se com rigor aqueles que desrespeitarem o pacto e a cartilha de código ético que pode vir dele. Que a polícia e a diretoria não se omitam, que a tolerância seja zero para o vandalismo. Em nome de um time mais forte, de uma torcida mais forte e, quem sabe, de uma sociedade mais forte e menos separada.
E, por favor, manerem nos xingamentos porque esse é apenas um pensamento — tão importante, bom, ruim, idiota, tosco, esplêndido ou genial quanto o seu.
Links para os excelentes textos de Rafael Castilho que me inspiraram: aqui e aqui
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