A
Benzetacil e a “Melhor Idade”
O
carnaval tinha deixado marcas. Toda reserva de energia, disposição e resistência física havia se perdido pouco a pouco em trios elétricos e porres intermináveis.
Um
machucado que surgiu na minha perna começou a inflamar. Sinceramente, não me recordo em qual circunstância
ele apareceu, mas o fato é que meu corpo decidiu que já era o bastante. O esforço
do meu metabolismo em suportar uma dor de garganta que decidiu me aporrinhar na
véspera do carnaval foi muito
grande. Agüentei firme durante toda a
folia, misturando medicamentos com bebidas e pouquíssimas horas de sono.
Sem
reservas de energia, meu corpo estava sujeito a toda sorte de infecções. Ao mostrar o meu machucado para a médica levei uma bronca e um castigo: - “vai direto pra benzetacil”,
sentenciou a médica que, embora brava,
permanecia bonita.
Outro
castigo foi uma lista de remédios caros. Antibióticos que prometem desinfetar e fazer uma faxina no sangue
da gente.
Odeio
tomar injeção. Sou um medroso assumido. A
verdade é que a injeção dói muito mais do que a agulhada
em si. Ela remexe com lembranças traumáticas de infância. Levar uma injeção depois de adulto nos joga em um repentino desamparo, pois
não podemos mais chorar nem
pedir o afago e proteção da mãe. Devemos ser fortes e aparentar uma corajosa indiferença frente à dor e o trauma.
Poucas
coisas podem ser tão hostis como a injeção. A gente encosta numa pia ou balcão qualquer. Deve colocar a bunda de fora. O enfermeiro ou a
farmacêutica quebram o teu galho
fechando a cortina ou encostando a porta. A gente fica ali vulnerável. Sem saber se sofremos mais com a doença, com o constrangimento ou com a filha da puta da agulha
que em alguns instantes promete te furar.
A
enfermeira está muito segura. Tranquila e
imperturbável. Você é só mais uma bunda rotineira que fica involuntariamente
contraindo a musculatura do glúteo. O que faz com que ela
fique ainda mais irritada e impaciente.
Eles
preparam a seringa com um quê de sadismo. Jogam um pouco do
líquido para fora da seringa e
quando decidem que é suficiente te furam sem dó nem piedade. Filha da puta!
Alguns,
antes da espetada derradeira, passam um algodão
úmido com alguma substância que promete aliviar os efeitos da espetada. Mas na
verdade é só mais um recurso sádico. Um acréscimo de carinho e afago que só aumenta a sua ansiedade antes do momento fatal. E você fica todo tenso. Cretinamente o algoz ainda te diz assim:
RELAAAAXA...
Não bastando ter sido condenado à benzetacil, tive que esperar a minha vez em uma espécie de corredor da morte. Ofereceram uma sala mais confortável em que se lia na entrada: “Melhor Idade”.
Na sala
havia uma porção de idosos compartilhando
momentos de interação, sem disfarçar certo interesse naquele momento em que desfrutavam de um
pouco de atenção e cuidado.
Num dos
cantos da sala um velho bem arruinado recebia soro no braço. Ao ser espetado pela agulha fez uma careta de dor, porém não ousou emitir nenhum
sussurro. Aceitou obedientemente a medicação e ficou ali, imperturbável e silencioso.
As outras
mulheres de “melhor idade” aguardavam a medicação. Demonstravam irritação com a demora. Aproveitavam aquele momento para reclamar
de tudo e de todos.
Reclamavam
do hospital, dos enfermeiros, dos médicos que não davam atenção às suas queixas e nem as olhavam na cara, do caminhão de lixo que fazia um barulho infernal numa rua onde
deveria prevalecer o silêncio. Reclamavam dos filhos
que demoravam muito tempo para visitá-las, dos netos que não tem educação, das noras ciumentas e
aproveitadoras, que não dão a mesma educação aos netos. Elas se queixavam
do preço da carne e do leite, da
Unimed, da aposentadoria que não alcança, do ponto de ônibus que mudou de lugar, da
labirintite, da coluna, da lombar, da morte, dos remédios cada dia mais caros. Não
gostavam da Dilma guerrilheira, do Haddad que não
faz nada, do Padre que reza a missa com muita pressa. E dos joelhos. Todas elas
reclamavam dos joelhos.
Pensei
por um instante em quem foi o estúpido que criou este conceito
de “melhor idade” referindo-se justamente ao período mais difícil da existência humana. Creio que foi alguém muito polido e politicamente correto. Alguém que tinha interesse na lealdade e cumplicidade dos
idosos. Com certeza, alguém que mantém dentro de si uma porção bem farta de cinismo e de
ironia.
Durante
minha espera procurei me concentrar em alguma leitura. As reclamações subsequentes impediam minha concentração. Também, cada vez que eu desviava
por alguns instantes os olhos do livro, minhas colegas de sala sorriam e me
olhavam com algum clamor, convidando-me a participar do debate. Esperavam minha
opinião sobre tudo o que era dito.
Talvez eu também devesse me queixar das
coisas da vida.
O velho
permanecia em silêncio. Talvez soubesse que era
melhor assim. Fazia cara de insano e fraco de mais para conversas. Encostava a
cabeça de lado e permanecia
recebendo o soro.
Uma a
uma, as outras senhoras de “melhor idade” também eram medicadas.
Eu abri o
tablet e comecei a jogar basquete. Fazia movimentos repetidos e compulsivos
para bater meu recorde em número de cestas. Mas as
senhoras continuavam desejando a minha participação.
Agora todas falavam o porquê de estarem ali e qual o menu
de doenças e moléstias que elas acumulavam. Agora eram mais incisivas.
Queriam saber por que eu estava naquela sala e o que me levara até ali. Qual seria a minha doença?
Estaria esperando minha mãe ou minha avó?
Percebi
que eu estava agindo com arrogância ao permanecer fazendo as
minhas cestas no joguinho de basquete. Todas estavam ali abrindo seus corações. Contando de suas vidas. Falando de dramas familiares.
Por que somente eu permaneceria alheio àquela situação.
Fechei o
tablet e comecei a responder às perguntas.
Rapidamente
estava falando da minha vida. De que estava lá
para curar um machucado que me acompanhava desde o carnaval. Que estava na
Bahia. Que não era tão perigoso assim. E que elas tinham razão, essa geração está mesmo perdida.
Elas
disseram que realmente a benzetacil doia muito. Que eu deveria pedir para que
ela viesse acompanhada de lidocaína pra aliviar o sofrimento.
Perguntaram
se eu era casado, solteiro ou viuvo. Se eu morava com meus pais.
Perguntaram
sobre minha profissão, o que me obrigou a passar
alguns minutos explicando o que realmente um sociólogo
fazia da vida.
Uma das
senhoras disse que gostaria de me apresentar sua filha, que era engenheira química e tal como eu ainda estaria "sozinha"
esperando alguém que valesse à pena.
Meu nome
foi chamado. Um enfermeiro muito magro, calvo e pálido
me aplicaria a injeção. Pedi licença às senhoras para me retirar.
Elas pediram que eu voltasse e contasse como foi. Que porra é essa, eu pensei... O velhinho esticou os olhos e me saudou
movendo minimamente o queixo. Depois retornou à
sua aparente condição de insano.
Entrei
numa cabine. Havia somente uma mesa de madeira. O enfermeiro ordenou que eu
baixasse a calça. Eu obedeci. Enquanto estava
lá com meia bunda de fora ele me
perguntou com uma voz meio metalizada:
- você já tomou benzetacil?
Disse que
sim, mas quando criança. Aproveitei a deixa e pedi
para que ele incluísse a tal lidocaína. Ele ficou aparentemente irritado. Não parecia ser um bom dia para ele. Na verdade, levando em
conta sua aparência, nenhum dos dias de sua
vida devem ter sido bons. Quanto à lidocaína ele disse que a médica deveria ter receitado.
Que eles têm ordens para não incluir sem a receita médica.
Pedi para
ele quebrar o galho, mas foi pior. O cara ficou mais impaciente e emendou:
- você vai querer na direita ou na esquerda?
Não entendi a pergunta. Mas logo concluí que eu deveria responder se eu preferia a injeção na "bunda direita" ou na "bunda
esquerda".
- Na
esquerda, meu amigo. Vai lá...
Procurei
concentrar o peso do meu corpo no lado direito para aliviar as coisas no outro
glúteo. Não tive direito nem ao algodãozinho
molhado. Foi a seco mesmo. Plau! Veio a espetada. Em seguida veio o líquido da injeção. Doía muito. Cacete!
Fechei os
olhos e procurei lembrar o carnaval. Da zoeira. Que de alguma forma aquilo
valia à pena.
-
Pronto... Respondeu o enfermeiro ainda com a voz metalizada. Parecia querer
dizer: “chega de frescura” ou “tanto drama pra isso”. Sei lá, talvez ele só tivesse dito “pronto” mesmo.
Agora eu
podia ir embora, mas lembrei de que deveria contar a experiência para as minhas colegas de “melhor idade”. Pensei que fosse melhor ir
embora, mas topei passar para dar um alô para as meninas.
Apareci
brevemente na porta me despedindo. “Doeu muito?”, perguntou uma das senhoras. Respondi que fora tudo
tranquilo. Mandei um beijo e fui embora.
Enquanto
esperava meu carro com o manobrista a maldita benzetacil doía demais. Quase chorei.
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