sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O simbolismo da condenação de Lula

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Muito além do golpe. Além também dos grandes interesses embutidos no esforço político de sacar o PT do governo. Para além das grandes negociatas que se deram e se darão na calada das noites. Além da tragédia social que se avizinha.
Para além de tudo isso, a condenação do Lula é carregada de um imenso simbolismo que pode ser comparado com outros tantos episódios da história.
Até pensei em chamar de medieval a condenação de Lula, mas me dei conta que a História Antiga está repleta de episódios como este e, em verdade, eles jamais deixaram de ocorrer, até os dias de hoje.
Para homens como Lula foram construídos castelos e suas masmorras, calabouços, prisões, forcas, guilhotinas e paredões.
Cabeças como as de Lula foram degoladas e expostas em cidades do mundo, sob aplausos das multidões e fanfarras tocando marchinhas.
Lula jogou um jogo arriscado. Sua incrível inteligência, alinhada astronomicamente a um conjunto de circunstâncias permitiram a ele alcançar um posto desejado por muitos. Quase todos.
Esse cargo “não era pra ele”. Não para um retirante chegado na cidade grande no pau de arara. A existência política de Lula, durante certo período, poderia até ter suas funcionalidades para as elites econômicas e dirigentes. Sua eleição, que não era prevista, foi se tornando exequível e em dado momento inevitável, mas haveria de ser um enredo perfeito de fracasso e vexame a ser contado para as próximas gerações. A história do analfabeto que chegou ao poder. Que grande piada. Mas não foi assim que tudo ocorreu, como felizmente se sabe.
A subversão das velhas hierarquias sociais, por si só, já seria uma grande afronta que não haveria de passar em branco. Mas, o sucesso do Governo Lula foi imperdoável. Aquela fila de homens brancos, endinheirados e empoderados esperando para apertar mão do metalúrgico sindicalista... ah... nananina não. A lavadeira de São Bernardo nos salões nobres das dondocas. Isso não ocorreria sem uma grande revanche.
O Brasil nunca precisou de apartheid. Nunca foi usual cartazes e placas proibindo os negros de adentrarem em certos espaços. Nosso racismo é um sistema muito mais eficiente e sofisticado do que em qualquer outro lugar do mundo. Sabem por quê? Aqui todo mundo sabe se colocar no seu lugar! Não é isso que se diz? “Coloque-se no seu lugar”. E o Lula não se colocou em seu lugar. O sindicalista, que no Brasil, antes de mais nada é considerado um ingrato e mal-agradecido, por afrontar o patrão que lhe dá o que comer, não se pôs no seu lugar.
Lula não foi um mero serviçal das elites. Não que se tivesse sido um serviçal no poder seria absolvido. Mas Lula teve luz própria. Uma luz com grande brilho. Por outro lado, é bom que se diga, Lula esteve longe de ser um revolucionário. Foi um reformista. Um conciliador. Soube, como se dizia de Getúlio Vargas, ser pai dos pobres e mãe dos ricos. Mas, seu governo foi marcado por uma espécie de subversão coletiva de classes. Não somente o Planalto foi ocupado, mas outros tantos espaços, outrora exclusivos de uma casta privilegiada. Não que a mobilidade social e a ascensão de uma nova classe média tenha sido uma novidade histórica do Governo Lula. Porém, essa aliança política com o que alguns chamam de sub proletariado alavancado como um novo e decisivo ator político, mexeu com as bases da república. Desmontou sistemas de dominação que perduravam por décadas. Tremeu as bases do coronelismo.
Lula e o PT engendraram um sistema de alianças que resolveu uma questão eleitoral, mas esteve longe de resolver a questão do poder de fato.
Esse erro foi e continua sendo fatal.
É desse erro inicial de entendimento que se desencadeia essa tragédia composta por um conjunto de acontecimentos e que dá trabalho para analistas, sejam eles dos grandes salões, ou para os analistas vulgares de botequim, como se sabe, é o meu caso.
Desse erro inicial, a que me refiro, parte a suposição de que ser a mãe dos ricos garantiria alguma aceitação ao poder do PT. Besteira!
Provou-se equivocada a ideia de que os banqueiros e a classe empresarial, ganhando muito dinheiro, tornaria possível a construção de um pacto para o desenvolvimento social.
Provou-se equivocado o mecanismo de empoderar e endinheirar certa parcela da classe política, que supostamente estaria interessada apenas em enriquecer, construindo canais de irrigação de bilhões de dinheiros para financiamento do sistema político. Deu no que deu. Quando os rios de dinheiro que financiavam a governabilidade (que supostamente garantiria um bem maior) secou, essa frágil aliança sucumbiu e a governabilidade acabou. Nesse ponto, a Lava Jato foi cirúrgica em seu propósito. Soma-se a isso os erros desastrosos na condução política nos últimos anos do Governo Dilma. Mas, digamos que quando acabou a cerveja, acabou a amizade.
Provou-se também equivocada a suposição de que as classes médias urbanas seriam gratas ao governo pelo bem-estar material e pela bonança durante boa parte do período dos governos Lula e Dilma.
Seja com as elites, a classe política e a classe média, as coisas não deram certo simplesmente porque “não era só dinheiro”. Tratava-se também de poder e de prestígio. A classe pobre esteve e continua em sua maior parte com Lula - basta ver as pesquisas - porque esta sim se viu empoderada nos últimos anos. Não é apenas gratidão pela inclusão social e acesso aos bens de consumo. As classes pobres ganharam um protagonismo político jamais visto.
Em resumo, a condenação de Lula é também a história do fracasso da tentativa da concertação de classes.
Não que essa tentativa seja ausente de nobreza. É preciso ainda reconhecer, que se não fossem as qualidades conciliadoras do Presidente Lula, ele jamais teria alcançado o sucesso que alcançou e seu governo não teria tanta popularidade. A concertação foi também uma história de sucesso, até pela manutenção da ordem institucional. Não seria perdoado, caso o Governo Lula fissurasse essa ordem.
O erro mais grave [que termina na masmorra] foi certas personalidades políticas acreditarem que tinham construído uma "aliança" com as elites. Os mais tolos, inclusive, chegaram até a acreditar que poderiam controlá-la. Os deslumbrados imaginaram que faziam parte desta elite. Os vacilões se lambuzaram, apaixonaram-se pelo dinheiro, esqueceram quem eram e se tornaram bons vivans.
Não perceberam, que por parte das elites, essa aliança era meramente funcional. Tinha um propósito bem definido e, principalmente, prazo de validade.
Tão logo foi possível, colocaram todo mundo na cadeia. É simbólico. A história está aí para ser contada. Podem ter sido modificados os argumentos, os ritos jurídicos, os discursos, as formas. Mas quem retomou o poder mandou todo mundo para a jaula. Em outros tempos talvez seriam executados em praça pública ou seriam obrigados a usar máscaras de ferro.
Imaginem vocês o Palocci. Este se entregou gostosamente aos interesses dos grandes rentistas. Fez de tudo para vender o governo. Mesmo assim foi para a masmorra para que aprenda qual é o seu lugar.
"Ora, mas todos eles do outro lado são grandes corruptos travestidos de negociantes". Sim, mas "eles podem". Agora, quem ousou ocupar o castelo e se acreditar empoderado, foi parar na cadeia.
Não se trata de responsabilizar o Lula por todos os acontecimentos que desencadearam na sua condenação. Repito que a opção pela tentativa de concertação foi também uma história de sucesso e o Governo Lula deixa um legado histórico para o Brasil que será certamente reconhecido pelas próximas gerações e pela história.
Mas, serve também para que a esquerda aprenda muito com o ocorrido.
A condenação de Lula deixa nítido o modo de operação das elites. É, inclusive, uma condição necessária para sua existência e manutenção do status quo. Ou seja, não tem acordo. Eles querem tudo.
É inevitável pensar. Será que é possível transformar de fato as estruturas sem transtornos e decisões difíceis e ruidosas?
Na véspera da eleição de Lula, Regina Duarte foi à televisão dizer que "sentia medo" de Lula ser igual ao Hugo Chavez. Desde o início, o Governo Lula dedicou boa parte de sua energia para confirmar que o Brasil não seria uma filial do chavismo. Fez isso por uma questão política, mas também para combater os frequentes e danosos ataques especulativos contra a economia brasileira.
O medo era que o Brasil virasse uma Venezuela. Que o Brasil virasse uma Cuba. Será que o Brasil está tão melhor assim que essas nações do mesmo continente?
Será que não teria sido melhor ter tomado decisões difíceis e barulhentas como a Lei de Mídia, por exemplo?
A história está mostrando que sim.
Mas, aparentemente, o núcleo de governo efetivamente acreditou que teria algum reconhecimento das elites. Até o último dia. Efetivamente acreditou nessa aliança e não entendeu a natureza funcional dela. Será que não teria sido melhor Lula ter aprovado no congresso, quando tinha 80% de popularidade uma reforma política mais estrutural?
Mesmo a possibilidade de ter aprovado o direito de concorrer a um terceiro mandato, como fizeram e fazem tantos governantes pelo mundo. Valeu à pena abrir mão para evitar a gritaria? Se tivessem sido compradas essas brigas, Lula certamente teria sido chamado de ditador, censor, que havia tolhido a liberdade de imprensa. O governo seria chamado de totalitário.
Depois que tudo aconteceu, é fácil falar. Mas devemos aprender com os acontecimentos. Adiantou esperar reconhecimento pelo caráter democrático do governo Lula? Adiantou esperar alguma consideração de quem sentava à mesma mesa? Aparentemente não. Acabaram de condenar Lula a doze anos de prisão. A praticamente morrer na cadeia.
Não se trata de defender ou acreditar que o melhor teria sido um golpe de Lula para se perpetuar no poder. Longe disso.
Mas é no mínimo burrice acreditar que "do lado de lá" tenha alguém que valorize de fato a democracia. Se valorizassem não teriam dado o golpe em Dilma, respeitariam a vontade das urnas, não tirariam Lula da disputa.
A história é contada pelos vencedores. Lula seria considerado totalitário pelo “terceiro mandato” e Angela Merkel democrática.
Não há personagens na história que tenham enfrentado grandes interesses imperiais que não sejam tratados pelo discurso hegemônico como “mocinhos”. Fidel é ditador, Che Guevara assassino, Mandela era terrorista. Depois o transformaram num senhorzinho pacifista inofensivo. Por outro lado, há galerias de presidentes e líderes políticos escravocratas, torturadores, sabotadores e genocidas com suas estátuas repletas de flores, recebendo tratamento de heróis históricos. Assim funcionam as elites. Eles não se envergonham de nada que fizeram. Exterminaram civilizações, mas escreveram seus livros para contar histórias de bravura.
E nós, ao que parece, acreditamos nesse discurso construído pela burguesia. Não desagradamos tanto, na esperança de recebermos um tratamento digno como presente de reconhecimento. Isso não é possível. Quem tiver interesse, vista a carapuça de idealista ingênuo, escolha cinco ou seis frases que não desagrade tanto os grandes barões e quem sabe seja selecionado como um dos tantos esquerdistas de estimação das elites. Certamente haverá um ou outro convite para coquetéis onde existem cotas para “comunistas domesticados” que sabem se comportar. Ou, se preferir, fique no seu lugar de fala em alguma sala fechada de universidade falando sobre os micros aspectos que interferem na formação de sua micro realidade. Quem não se interessa por exercer esses papeis, saiba que não tem massagem. É porrada! Se vacilar eles te colocam na cadeia e te eliminam!
A condenação de Lula deixa grandes ensinamentos. A história continua sendo escrita. As elites, burras ou não burras, não vacilaram em jogar fora talvez a única personalidade com capacidade e condições de construir uma trégua social entre classes. Trégua essa que previa inclusive a manutenção dos privilégios e dos grandes lucros de quem manda nesse país a tantos anos. O recado foi claro: não tem acordo. Não tem concertação. O Mercado não quer no Planalto nada menos que um funcionário obediente que seja despachante de seus interesses.
Hoje predomina o desânimo. Mas é importante entender que estão condenando um grande negociador político. As lutas sociais não são apenas de Lula. O presidente é um catalizador de demandas históricas da nossa sociedade. É alguém com capacidade de aglutinar essas demandas e institucionalizá-las dentro das regras do jogo político. Mas essas lutas não deixarão de existir pela ausência de um negociador (que foi descartado). Na verdade, essas demandas tendem a explodir. O que agora parece marasmo, logo irá transbordar, talvez de maneira incontrolável. E as lições históricas que ficaram deixam uma delicada mensagem ao povo que no futuro talvez não seja tão interessante assim negociar. Estamos construindo a cada dia um país mais intransigente. E, certamente, o cultivo da intransigência trará consequências. Estão semeando tempestades.

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