quarta-feira, 19 de junho de 2013

O movimento é horizontal, mas a sociedade brasileira é vertical. Os limites (e riscos) das manifestações "sem lideranças"



Quero de antemão me desculpar, caso seja incompreendido por alguns de meus melhores amigos que colaboram com o Movimento Passe Livre, principal ator na realização dos últimos protestos na Cidade de São Paulo e no Brasil.

Deixo claro meu irrestrito apoio aos protestos pela redução das tarifas de transporte público e reduzir as “catracas” que fissuram o mapa da exclusão nas grandes cidades brasileiras.
Antes de tudo, gostaria de admitir que sou um dinossauro em matéria de política e movimentos sociais.

Faço parte de uma geração que valorizava grandes lideranças políticas, nas ruas e nas urnas.
Cantávamos o Hino Nacional sem repúdio e éramos politicamente “engajados” justamente quando exercíamos o nacionalismo, algo tão démodé e indesejado nos dias de hoje.

Naturalmente, não compus as fileiras dos grandes militantes que lutaram contra a Ditadura Militar no Brasil, mas posso dizer que fui formado politicamente por grandes expoentes deste movimento. Sendo assim, recebi forte influência desses grandes brasileiros.

“Minha geração” cometeu erros e acertos, como todas as outras.

Nesse cenário atual em que os partidos políticos vivem uma crise mundial de representação na sociedade, certamente não significamos referência alguma para vocês.

Mas posso dizer que nossa turma lutou como pôde contra o rolo compressor que foi a agenda neoliberal nos tristes anos 90, não só no Brasil, mas na América Latina.

Tínhamos poucos recursos frente ao triunfo neoliberal e euforia em torno da globalização, depois do fim da Guerra Fria.

Não pensem que foi tranquilo. Que não enfrentamos a truculência e a violência. Com o agravante de que não existiam as redes sociais para denunciar à sociedade os abusos que sofremos. Também não contávamos com as redes para convocar manifestações, tampouco para contrariar a “versão oficial” da grande mídia.

Como eu disse, não quero fazer nenhuma defesa da “minha geração” até porque a “minha geração” é agora, pois estou vivo, forte e atento.

Ontem estava no centro da cidade, colaborando com este novo ato, ainda sob a ressaca do sucesso no dia anterior.

Em frente à Prefeitura de São Paulo as cenas eram terríveis.

Não vou me revestir de um discurso moralista, mas sinceramente considero lamentáveis os atos de vandalismo nesta ocasião.

No dia anterior, o movimento havia obtido vitórias significativas. Recebeu o apoio de milhares de brasileiros que além de concordarem com a bandeira de redução do preço das tarifas nos transportes públicos, também não aceitaram a repressão policial contra as manifestações livres pelos direitos sociais.

Além disso, o movimento rendeu a velha mídia que como último recurso para não se isolar frente à sociedade brasileira, mudou radicalmente sua posição tradicional e passou a mobilizar grande esforço para se apropriar das manifestações e resiginificá-la da maneira mais conveniente para as elites.

A batalha estava ganha (talvez ainda esteja). O prefeito já preparava o discurso para acatar a redução do último aumento. O governador tirou a polícia das ruas apostando que uma onda de vandalismo reverteria o jogo em favor da polícia, fazendo com que a sociedade clamasse pelo retorno da Tropa de Choque.

Neste contexto, a violência seria uma verdadeira burrice. Se as manifestações continuassem pacíficas, dispensando a interferência policial, estaríamos dando um passo decisivo para derrotar o discurso opressor.

Mas testemunhei um vandalismo eunuco.

Algumas lideranças do movimento tentaram dissuadir os revoltosos, mas o que se viu foi uma manifestação de ódio pelo Brasil. Não que eles sejam obrigados a amar o Brasil. O país deve garantir o direito, inclusive, de que eles odeiem o Brasil, como se viu  e ouviu em seus gritos raivosos. Mas ficou evidente que o grupo não tinha nenhum interesse pelo movimento coletivo.
Um guarda solitário tentava defender a bandeira nacional que ameaçava ser incendiada.

Os prédios e monumentos eram pixados. Mas nenhuma frase política era escrita. Nada relacionado às manifestações. Nenhuma palavra de ordem. Nenhuma poesia. Nenhum palavrão. Nada! Apenas assinaturas de gangues, absolutamente indecifráveis para os “leigos”.

Ficou evidente que eles não tinham compromisso nenhum com causa alguma. Apenas compromissos com eles próprios.

Efeito colateral mais abjeto do neoliberalismo, estes “neo-psuedo-anarcos” saquearam aparelhos celulares numa loja, para demonstrar o tamanho exato de suas aspirações.

Quem olha o ocorrido com um mínimo de atenção irá perceber que tais acontecimentos estão absolutamente desconectados com o propósito que mobilizava milhares de pessoas em outros sítios da cidade.

Nos dois últimos dias de protesto, me chamou a atenção o caráter heterogêneo dos manifestantes, cada um com motivações e aspirações diferentes dos demais.
Este país paga hoje um preço muito alto pela desigualdade social histórica, negligenciada durante anos.

Mesmo com objetivos imediatos comuns, as pessoas não se reconhecem umas nas outras, ao ponto de haver agora certo incômodo e desconfiança sobre os diferentes propósitos abrigados sob a mesma bandeira de protesto.

Não existe carro de som para “dar a linha” ao conjunto de manifestantes. Cada um sai às ruas com suas pautas íntimas. Em meio ao protesto, cada um procura se manifestar contra seu inimigo mais íntimo. Alguns ofendem a mídia, outros as elites. Alguns berram contra o prefeito, outros contra o governador.

Depois que o movimento “cresceu” e ganhou as ruas, com a adesão de milhares de pessoas, o que poderia ser considerado tolerância entre as diferenças se converteu em aparente cinismo ao lidar com o propósito alheio.

Se o movimento é horizontal a sociedade brasileira é rigorosamente vertical.

O esforço, a honestidade e a firmeza de propósito destes ativistas em construir um movimento com lideranças orgânicas, mas sem partidos políticos ou representantes formais que respondam invariavelmente pelo movimento está absolutamente conectado com os grandes movimentos sociais de seu tempo.

A crise de representação política e a perda de legitimidade dos partidos políticos impulsionou o surgimento de grandes movimentos sociais ao redor do mundo, desconectados do sistema político formal.

Os jovens destes movimentos adquiriram absoluta rejeição aos partidos políticos e reagem com desconfiança às lideranças políticas tradicionais, inclusive com aquelas que são gestadas naturalmente dentro do  movimento.

Transparecer aspirações políticas eleitorais é motivo de vergonha e intimidação.
Compreensível a frustração desta geração com a “política oficial”.

O estágio mais degradado do neoliberalismo, fez com que os Estados fossem sequestrados pelo Mercado (com eme maiúsculo).

Aliás, não somente os Estados foram sequestrados, mas a própria história foi sequestrada pelo neoliberalismo.

Os cidadãos foram convertidos em meros consumidores. A realização dos indivíduos está restrita à esfera doméstica, com a aquisição de mercadorias e certos prazeres instantâneos. A solução dos conflitos que afetam o cotidiano das pessoas deve ser encontrada nos livros de autoajuda. Os verdadeiros inimigos estariam dentro de cada um de nós, sem eleger um inimigo político responsável pelas frustrações. A história acabou, e resta apenas um modelo a ser seguido. Sindicatos, partidos políticos e entidades de classe não seriam mais necessários.
As grandes experiências coletivas foram furtadas e o homem foi alienado de si mesmo.
Se o triunfo do cristianismo levou o homem à Idade das Trevas, por mais ou menos 1.500 anos, o triunfo do liberalismo econômico ameaça condenar os homens a outra era de escuridão, alienando os indivíduos de sua própria história.

Os movimentos sociais apartidários estão desconectados da política formal, porque assim foi necessário para que eles existissem de fato. São uma malcriada “falha no sistema”.

Mas apesar das brilhantes demonstrações de força e perseverança, estes movimentos têm um limite em si mesmo, quando se pensa em avançar rumo a maiores transformações.

Sem lideranças políticas formais e alijados das disputas pelos cargos de representação política, depois de bem sucedidas, as ocupações limitam-se numa carta de boas intenções.

Os movimentos estão permanentemente sujeitos a verem suas vitórias políticas apropriadas pelas forças regulares da política, como parece ocorrer nesse momento pré-eleitoral no Brasil. Ainda que os manifestantes sejam absolutamente honestos com a causa e leais aos compromissos assumidos, vê-se a tentativa maliciosa de capturar a energia política do movimento para influenciar o processo decisório.

A crise na Argentina de 2001, com a aguda deterioração do modelo neoliberal, serve hoje como referencial às principais economias europeias como um exemplo possível do  “que vem depois”, para o bem e para o mal. Os protestos deste início de século tinham um slogan muito comum nos dias de hoje: “que se vayan todos”. Mas “eles” não se foram, e muito da energia política dos “piqueteros” foi capturada pelas forças oficiais da política.

Voltando para o nosso contexto atual, a dificuldade (ou impossibilidade) do movimento reconhecer e destacar algumas lideranças políticas dificulta a possibilidade de conter grupos que boicotam e prejudicam o alcance de resultados e objetivos.

Cabe aqui uma reflexão mais profunda. Seria tão ruim assim indicarmos lideranças políticas comprometidas com o movimento?  Será que a máxima de que “ninguém me representa” não passa de uma falsa virtude?

Será que vivemos um tempo em que somos incapazes de reconhecer a liderança de alguém?

 Que a decepção afete definitivamente nossa capacidade de nos sentirmos representados? 

Que olhemos com tanta desconfiança todo aquele que tenha atitude de liderança e busque influenciar decisões coletivas?

É muito comum escutar que “fulano quer tirar proveito político” de determinada situação. Ora, será que a capacidade de liderança de uma pessoa deve significar necessariamente o ocaso de outra?

A impossibilidade de que uma pessoa se sinta representada por outra, revela a ausência de solidariedade e um estágio avançado do individualismo tão comum no nosso tempo.

A experiência do movimento que redundou nestes protestos gigantescos é absolutamente atraente e interessante.

Mas proponho certas reflexões.

Existe uma ideia falsa na sociedade, disseminada pela elite, de que o Estado é o território dos maus, enquanto o Mercado é o território dos bons. Que a política é corrupta e degradante, enquanto no setor privado tudo é permitido, pois estaríamos apenas maximizando nossos interesses, algo muito natural e justificável nos dias de hoje.

Não quero dizer que os organizadores deste movimento não entendam esta lógica. Que não combatam as forças opressoras das elites.

Mas seria muito positivo se eles pudessem falar isso em alto e bom som, para todos os manifestantes, os antigos e os novos, para que todos percebam e não caiam em certas armadilhas. Para que saibam orientar os seus “canhões” e dimensionar com exatidão os seus inimigos.

Ainda que a ambição seja lutar contra tudo e contra todos, derrotar todas as forças opressoras, a história recomenda que seja escolhida e alcançada uma vitória de cada vez.














Um comentário:

  1. Estava no google procurando informações sobre horizontalidade dos movimentos e me deparei com seu blog. Achei o texto muito bacana e propõe reflexões muito interessantes. Jamais tinha aventado a impossibilidade de liderança e, de certo modo, a da crise de representatividade política, enquanto desacordo e individualismo entre os homens. Me pareceu que você atribui a recusa do MPL em fornecer uma liderança - muito além de dar um direção clara e inequívoca ao movimento – ao mesmo individualismo que você identificou na turba desvairada. Mas se é assim, como fazer política com P maiúsculo, quando a política é pensada em termos tão estreitos e subordinada aos interesses do mercado e das inúmeras concessões com outros partidos políticos? Acredito que os movimentos sociais não afetam o poder, não mudam as instituições do poder, mas são capazes de mudar as decisões que são tomadas no interior destas instituições, o que já é algo muito importante.

    Grande abraço!

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