sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O sinalizador é só um símbolo, mas os símbolos tem poder

- Junho 2017


Entra em campo o Corinthians. A Fiel de pé recebe o time que aponta no gramado. As bandeiras tremulam na arquibancada. Um mar de bandeiras. No rosto do povo se vê o orgulho de quem levanta com a força dos braços a bandeira do timão. O barulho é ensurdecedor. Misturam-se na atmosfera o grito da torcida, os tambores rufando, os fogos de artifício. Eram muitos fogos! Explodiam em cima de nós. A gente gritava: Corinthians! Corinthians!
Gritávamos todos usando todo ar que dispúnhamos nos nossos pulmões. Toda força que emanava da garganta. Mesmo assim não conseguíamos ouvir as nossas vozes porque o barulho era muito alto. Eu era um menino. Mas se essa festa fosse hoje eu continuaria sendo menino. Desde a arquibancada não se via mais o campo. Apenas as bandeiras a nossa frente e muita fumaça. Na falta de outro material, eu trazia comigo um rolo de papel higiênico. Olhei para meu pai. Atirei com força o rolo para o alto segurando o papel. Vi o rolo descendo pela arquibancada. Era apenas mais um risco naquele mar de papeis e panos alvinegros.
Olhava para os lados. Via o povão. Gente verdadeiramente simples. Gente desdentada. Com cara de pobre. Quem não era pobre ficava junto e se abraçava. Ali era uma favela só. Um senhor que eu não conhecia, do nada me segurou pelos braços e me levantou. “Corinthians! Corinthians! Corinthians” gritava com os olhos arregalados em minha direção. Era muito especial participar de tudo aquilo.
Acidentes poderiam acontecer? Não sei. Segurava a mão do meu pai. Certamente nada me aconteceria. Correr aquele risco do imponderável em meio à multidão me fazia um soldado. Sentia-me já um homem. Estava feliz naquela atmosfera. Eu era cúmplice de toda aquela gente que nunca havia visto na vida. Naquele momento eu tinha certeza que fazia parte de um povo. Que não estava só. Havia um sentido de coletividade que eu não conseguia entender direito àquela altura da vida, mas se construiria e se edificaria dia após dia na minha vida. Eu era Corinthiano! Mais um Corinthiano no meio daquela massa.
Meu sovaco suava. Sentia o cheiro da minha camiseta na altura das axilas e sentia um cheiro forte de suor que saía de mim. Olhava de novo para o meu pai e ele sorria. Sentia-me livre. Eu podia gritar o palavrão que quisesse. E assim eu fazia. Não deixava por menos. Porra, caralho, torcida de cuzão. Quem manda nessa porra é a torcida do timão! Por-cú Vai tomar no cú! Segunda-feira é terça-feira, filho da puta é quem torce pro Palmeiras! Ouvia o xingamento de resposta, vindo do outro lado da arquibancada. Era legal. Era o sentimento de liberdade. Era a diversão que meu pai podia pagar. Porém, mesmo que ele pudesse pagar outra coisa mais sofisticada, eu não queria. Bastava me levar ao jogo do Corinthians.
Havia chegado às 13h. Esperava três horas olhando para o gramado. O melhor momento era a festa da torcida quando o Corinthians subia para o campo. Dali a pouco estourava o último rojão, sempre o mais grave de todos: BUM! Subia a fumaça para o céu. Todos gritavam Vai Corinthians! O jogo iria começar. Passada aquela bagunça toda ninguém havia morrido. Ninguém havia se machucado. Era só uma festa. Havia um sentido muito especial. Não era a festa que haviam feito para nós. Era a festa que a Fiel tinha feito para o Corinthians. Tratava-se de ser ativo e participativo. De interferir na história. De ter protagonismo. De existir. Tal qual aquele último morteiro da bateria de fogos: BUM!
Eu acordo em 2017 e vejo a arquibancada vazia. A festa acabou. Estamos na ilegalidade. Fomos proibidos de ser quem somos. De ter cultura própria. De fazer aquilo que se gosta e que faz sentido na nossa vida. De existir. Devemos nos adequar aos novos tempos. Precisamos ser recivilizados pelo neoliberalismo. Estar adaptados às leis de mercado, já que o futebol é mercado. As leis do mercado, exteriores ao que é humano e sua natureza, funcionam como a lei de um império distante, que esmaga quem somos e nos obriga a seguir leis estranhas que não nos fazem sentido.
É evidente que o tal sinalizador não é um problema. Mas se tornou um símbolo. E os símbolos tem poder.
Acender um sinalizador não é um gesto em si mesmo. Quem acende quer dizer algo. É um grito de liberdade. De autodefesa. De rebeldia. O gesto legítimo de desobediência que brota quando não acreditamos em uma lei estúpida. Quando a lei imperdoavelmente entra em atrito com os costumes e a cultura. Quando uma lei vai de encontro com outras leis fundamentais que nos garantem a liberdade e a livre expressão.
Porque a livre expressão não pode por em risco blá blá blá. Da mesma forma de que para quem acende o sinalizador é apenas um símbolo, para quem quer proibir também o é. O proibicionismo e a policialização do Estado se servem de diferentes medos e angústias que estão na sociedade para controlar, eliminar convergências, encontros, rebeldias, insubordinações, confabulações, formulações e sentido de liberdade.
A borrachada no povo que acende sinalizador provoca aplausos dos espíritos servis. As multas aplicadas pela justiça desportiva deixa nítido que ela está a serviço de outros interesses grandiosos, pois nos divide. Joga-nos uns contra os outros. Cria desentendimentos. Deixamos de refletir sobre o mérito das coisas. Se a luta é justa ou se a justiça é repressiva. Passamos a culpar uns aos outros pela multa que o clube levou ou pela interdição de parte do estádio. Nos dividimos e perdemos a capacidade de questionar o absurdo que está ocorrendo.
Logo, a polícia recebe elogios da cobertura jornalística da imprensa velha por descer a porrada nos marginais que tomaram conta do futebol e tiraram as famílias de bem dos estádios. Sim, a tradicional família branca. Aquela que detém o poder. Que é dona de tudo e de todos. Das universidades, dos aeroportos, dos bairros bons e dos camarotes. As famílias que habitavam os estádios antes deles serem ocupados pela gentalha. Tal qual quando esse era o esporte da oligarquia. Quando filho de mãe solteira não podia entrar. Quando preto tinha que passar pó de arroz na cara pra poder jogar. Essa é a nostalgia dessa gente.
Amigo corinthiano, basta olhar um pouquinho para nossa história. O Corinthians nasceu justamente para derrotar esses preconceitos. Para se intrometer e estragar a festa da oligarquia paulistana. Somos necessariamente incômodos. Depois do primeiro título da nossa história em 1914, a liga aristocrática se dissolveu e formou outra liga sem o Corinthians, quase provocando o encerramento das nossas atividades. Por pouco não desaparecemos, depois de incomodar a tradicional família paulista. Não só resistimos como voltamos mais fortes e nos fizemos Corinthians justamente com a força do operariado e de quem não tinha lugar na sociedade.
Por favor, perdoem minha sinceridade. Respeito as diferentes formas de pensar. Mas não existe contrassenso maior do que corinthiano coxinha. Corinthiano aplaudindo a polícia batendo em corinthiano. Dá vontade de chorar, na verdade. Claro que o aplauso dura pouco. Logo em seguida existe a pausa para mais uma self, fazendo biquinho com a torcida organizada ao fundo, como paisagem.
O problema não é o sinalizador. Ele é só um bastião. O que está em jogo é justamente esse sentido de liberdade que descrevi no primeiro parágrafo. O protagonismo. É a gente existir como povo.
O que está em jogo é nos transformar em espectadores enquanto insistimos em ser agentes. É transformar em espetáculo o que é um acontecimento histórico. E destruir os instrumentos de solidariedade que nos une. Que sejamos apenas seres individuais e individualistas sem nenhum sentido de coletividade e pertencimento. É o direito de protestar, gritar, xingar, nos expressar em faixas, camisetas ou berros. Nossas vozes precisam ser caladas. Temos preservado o direito de aplaudir. Isso sim. Seja no Estádio, seja no Estado. Aplaudir é o que nos cabe. As vozes que podem permanecer são tão somente aquelas que são mediadas pelas elites. Que escolhem por nós o que cantar, o que dançar, o que vestir, o que comer e que horas devemos dormir.
O Corinthians deveria ser sabedor de seu tamanho. Ao invés de ficar pagando multas que irrigam os cofres da CBF, deveria assumir sua responsabilidade histórica e não apenas ser reativo. Não existe problema da torcida. Primeiro porque a torcida não é um problema, como alguns querem acreditar. Segundo porque não existe torcida e Corinthians como coisa separada. Corinthians e torcida são a mesma coisa. Somos Corinthians, no plural. Somos os Corinthians.
Se isso serve na hora de negociar as cotas de tevê, deve ser também no momento em que é necessário que a instituição represente seu povo frente aos órgãos competentes. Até porque o clube é o maior lesado pelo proibicionismo que toma conta desse estado. O Corinthians tem frustrada grande quantidade de receitas que poderiam ajudar a pagar a Arena porque não pode realizar eventos no entorno do estádio. Aquela tal Fan Fest. Não pode porque onde há povo, onde há aglomeração, onde há encontro e convergências, há também intervenção policial. É assim que funciona esse estado. E o Corinthians aceita passivamente. Não assume o seu papel e desconhece o tamanho que tem. Não é favor nenhum ter o Metrô meia hora a mais depois do jogo. Quem está ali no estádio é o povo brasileiro. É quem sustenta esse estado e merece respeito.
A luz que se levanta não é a de um material descartável inofensivo comprado em qualquer loja de festa. A luz que ilumina a Fiel Torcida Corinthiana é a chama da liberdade. Esse mesmo artefato, quando aceso em outras torcidas do Brasil e do mundo, não causa incômodo algum. O que se quer apagar, na verdade, é a força e o espírito rebelde da torcida do Corinthians. Querem nos calar.
Podem apagar os sinalizadores, aplicar multas, interditar espaços. Nunca poderão apagar aquilo que está no nosso coração e na nossa mente. O que ilumina nossa arquibancada são as ideias da nossa gente. É o amor que a gente tem no coração. Jamais vão poder apagar aquilo que guardamos na memória. Aquilo que vivemos com o Corinthians. A nossa história. A nossa cultura. O que faz sentido para cada um de nós. Essa é nossa vida. O Corinthians é o que nós somos. O que está na cabeça da nossa gente, para sempre estará aceso! Essa chama jamais se apagará!

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