- Junho 2017
Entra
em campo o Corinthians. A Fiel de pé recebe o time que aponta no gramado. As
bandeiras tremulam na arquibancada. Um mar de bandeiras. No rosto do povo se vê
o orgulho de quem levanta com a força dos braços a bandeira do timão. O barulho
é ensurdecedor. Misturam-se na atmosfera o grito da torcida, os tambores
rufando, os fogos de artifício. Eram muitos fogos! Explodiam em cima de nós. A
gente gritava: Corinthians! Corinthians!
Gritávamos
todos usando todo ar que dispúnhamos nos nossos pulmões. Toda força que emanava
da garganta. Mesmo assim não conseguíamos ouvir as nossas vozes porque o
barulho era muito alto. Eu era um menino. Mas se essa festa fosse hoje eu
continuaria sendo menino. Desde a arquibancada não se via mais o campo. Apenas
as bandeiras a nossa frente e muita fumaça. Na falta de outro material, eu
trazia comigo um rolo de papel higiênico. Olhei para meu pai. Atirei com força
o rolo para o alto segurando o papel. Vi o rolo descendo pela arquibancada. Era
apenas mais um risco naquele mar de papeis e panos alvinegros.
Olhava
para os lados. Via o povão. Gente verdadeiramente simples. Gente desdentada.
Com cara de pobre. Quem não era pobre ficava junto e se abraçava. Ali era uma
favela só. Um senhor que eu não conhecia, do nada me segurou pelos braços e me
levantou. “Corinthians! Corinthians! Corinthians” gritava com os olhos
arregalados em minha direção. Era muito especial participar de tudo aquilo.
Acidentes
poderiam acontecer? Não sei. Segurava a mão do meu pai. Certamente nada me
aconteceria. Correr aquele risco do imponderável em meio à multidão me fazia um
soldado. Sentia-me já um homem. Estava feliz naquela atmosfera. Eu era cúmplice
de toda aquela gente que nunca havia visto na vida. Naquele momento eu tinha
certeza que fazia parte de um povo. Que não estava só. Havia um sentido de
coletividade que eu não conseguia entender direito àquela altura da vida, mas
se construiria e se edificaria dia após dia na minha vida. Eu era Corinthiano!
Mais um Corinthiano no meio daquela massa.
Meu
sovaco suava. Sentia o cheiro da minha camiseta na altura das axilas e sentia
um cheiro forte de suor que saía de mim. Olhava de novo para o meu pai e ele
sorria. Sentia-me livre. Eu podia gritar o palavrão que quisesse. E assim eu
fazia. Não deixava por menos. Porra, caralho, torcida de cuzão. Quem manda
nessa porra é a torcida do timão! Por-cú Vai tomar no cú! Segunda-feira é
terça-feira, filho da puta é quem torce pro Palmeiras! Ouvia o xingamento de resposta,
vindo do outro lado da arquibancada. Era legal. Era o sentimento de liberdade.
Era a diversão que meu pai podia pagar. Porém, mesmo que ele pudesse pagar
outra coisa mais sofisticada, eu não queria. Bastava me levar ao jogo do
Corinthians.
Havia
chegado às 13h. Esperava três horas olhando para o gramado. O melhor momento
era a festa da torcida quando o Corinthians subia para o campo. Dali a pouco
estourava o último rojão, sempre o mais grave de todos: BUM! Subia a fumaça
para o céu. Todos gritavam Vai Corinthians! O jogo iria começar. Passada aquela
bagunça toda ninguém havia morrido. Ninguém havia se machucado. Era só uma
festa. Havia um sentido muito especial. Não era a festa que haviam feito para
nós. Era a festa que a Fiel tinha feito para o Corinthians. Tratava-se de ser
ativo e participativo. De interferir na história. De ter protagonismo. De
existir. Tal qual aquele último morteiro da bateria de fogos: BUM!
Eu
acordo em 2017 e vejo a arquibancada vazia. A festa acabou. Estamos na
ilegalidade. Fomos proibidos de ser quem somos. De ter cultura própria. De
fazer aquilo que se gosta e que faz sentido na nossa vida. De existir. Devemos
nos adequar aos novos tempos. Precisamos ser recivilizados pelo neoliberalismo.
Estar adaptados às leis de mercado, já que o futebol é mercado. As leis do
mercado, exteriores ao que é humano e sua natureza, funcionam como a lei de um
império distante, que esmaga quem somos e nos obriga a seguir leis estranhas
que não nos fazem sentido.
É
evidente que o tal sinalizador não é um problema. Mas se tornou um símbolo. E
os símbolos tem poder.
Acender
um sinalizador não é um gesto em si mesmo. Quem acende quer dizer algo. É um
grito de liberdade. De autodefesa. De rebeldia. O gesto legítimo de
desobediência que brota quando não acreditamos em uma lei estúpida. Quando a
lei imperdoavelmente entra em atrito com os costumes e a cultura. Quando uma
lei vai de encontro com outras leis fundamentais que nos garantem a liberdade e
a livre expressão.
Porque
a livre expressão não pode por em risco blá blá blá. Da mesma forma de que para
quem acende o sinalizador é apenas um símbolo, para quem quer proibir também o
é. O proibicionismo e a policialização do Estado se servem de diferentes medos
e angústias que estão na sociedade para controlar, eliminar convergências,
encontros, rebeldias, insubordinações, confabulações, formulações e sentido de
liberdade.
A
borrachada no povo que acende sinalizador provoca aplausos dos espíritos
servis. As multas aplicadas pela justiça desportiva deixa nítido que ela está a
serviço de outros interesses grandiosos, pois nos divide. Joga-nos uns contra
os outros. Cria desentendimentos. Deixamos de refletir sobre o mérito das
coisas. Se a luta é justa ou se a justiça é repressiva. Passamos a culpar uns
aos outros pela multa que o clube levou ou pela interdição de parte do estádio.
Nos dividimos e perdemos a capacidade de questionar o absurdo que está
ocorrendo.
Logo,
a polícia recebe elogios da cobertura jornalística da imprensa velha por descer
a porrada nos marginais que tomaram conta do futebol e tiraram as famílias de
bem dos estádios. Sim, a tradicional família branca. Aquela que detém o poder.
Que é dona de tudo e de todos. Das universidades, dos aeroportos, dos bairros
bons e dos camarotes. As famílias que habitavam os estádios antes deles serem
ocupados pela gentalha. Tal qual quando esse era o esporte da oligarquia.
Quando filho de mãe solteira não podia entrar. Quando preto tinha que passar pó
de arroz na cara pra poder jogar. Essa é a nostalgia dessa gente.
Amigo
corinthiano, basta olhar um pouquinho para nossa história. O Corinthians nasceu
justamente para derrotar esses preconceitos. Para se intrometer e estragar a
festa da oligarquia paulistana. Somos necessariamente incômodos. Depois do
primeiro título da nossa história em 1914, a liga aristocrática se dissolveu e
formou outra liga sem o Corinthians, quase provocando o encerramento das nossas
atividades. Por pouco não desaparecemos, depois de incomodar a tradicional
família paulista. Não só resistimos como voltamos mais fortes e nos fizemos
Corinthians justamente com a força do operariado e de quem não tinha lugar na
sociedade.
Por
favor, perdoem minha sinceridade. Respeito as diferentes formas de pensar. Mas
não existe contrassenso maior do que corinthiano coxinha. Corinthiano
aplaudindo a polícia batendo em corinthiano. Dá vontade de chorar, na verdade.
Claro que o aplauso dura pouco. Logo em seguida existe a pausa para mais uma
self, fazendo biquinho com a torcida organizada ao fundo, como paisagem.
O
problema não é o sinalizador. Ele é só um bastião. O que está em jogo é
justamente esse sentido de liberdade que descrevi no primeiro parágrafo. O
protagonismo. É a gente existir como povo.
O
que está em jogo é nos transformar em espectadores enquanto insistimos em ser
agentes. É transformar em espetáculo o que é um acontecimento histórico. E
destruir os instrumentos de solidariedade que nos une. Que sejamos apenas seres
individuais e individualistas sem nenhum sentido de coletividade e
pertencimento. É o direito de protestar, gritar, xingar, nos expressar em
faixas, camisetas ou berros. Nossas vozes precisam ser caladas. Temos
preservado o direito de aplaudir. Isso sim. Seja no Estádio, seja no Estado.
Aplaudir é o que nos cabe. As vozes que podem permanecer são tão somente
aquelas que são mediadas pelas elites. Que escolhem por nós o que cantar, o que
dançar, o que vestir, o que comer e que horas devemos dormir.
O
Corinthians deveria ser sabedor de seu tamanho. Ao invés de ficar pagando
multas que irrigam os cofres da CBF, deveria assumir sua responsabilidade
histórica e não apenas ser reativo. Não existe problema da torcida. Primeiro
porque a torcida não é um problema, como alguns querem acreditar. Segundo
porque não existe torcida e Corinthians como coisa separada. Corinthians e
torcida são a mesma coisa. Somos Corinthians, no plural. Somos os Corinthians.
Se
isso serve na hora de negociar as cotas de tevê, deve ser também no momento em
que é necessário que a instituição represente seu povo frente aos órgãos
competentes. Até porque o clube é o maior lesado pelo proibicionismo que toma
conta desse estado. O Corinthians tem frustrada grande quantidade de receitas
que poderiam ajudar a pagar a Arena porque não pode realizar eventos no entorno
do estádio. Aquela tal Fan Fest. Não pode porque onde há povo, onde há
aglomeração, onde há encontro e convergências, há também intervenção policial.
É assim que funciona esse estado. E o Corinthians aceita passivamente. Não
assume o seu papel e desconhece o tamanho que tem. Não é favor nenhum ter o
Metrô meia hora a mais depois do jogo. Quem está ali no estádio é o povo
brasileiro. É quem sustenta esse estado e merece respeito.
A
luz que se levanta não é a de um material descartável inofensivo comprado em
qualquer loja de festa. A luz que ilumina a Fiel Torcida Corinthiana é a chama
da liberdade. Esse mesmo artefato, quando aceso em outras torcidas do Brasil e
do mundo, não causa incômodo algum. O que se quer apagar, na verdade, é a força
e o espírito rebelde da torcida do Corinthians. Querem nos calar.
Podem apagar os sinalizadores, aplicar multas, interditar
espaços. Nunca poderão apagar aquilo que está no nosso coração e na nossa
mente. O que ilumina nossa arquibancada são as ideias da nossa gente. É o amor
que a gente tem no coração. Jamais vão poder apagar aquilo que guardamos na
memória. Aquilo que vivemos com o Corinthians. A nossa história. A nossa
cultura. O que faz sentido para cada um de nós. Essa é nossa vida. O
Corinthians é o que nós somos. O que está na cabeça da nossa gente, para sempre
estará aceso! Essa chama jamais se apagará!
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