terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

CHORANDO NA RUA




Na sala de aula do curso de inglês a professora dava lição e treinava seus alunos adultos para utilizarem o “Simple Past”.
O exercício consistia em responder tudo em inglês, forçando o cérebro do aluno a elaborar sentenças sobre seu passado, seja ele distante ou recente. Era uma turma pequena com seis ou sete alunos e alunas.
A mim foi perguntado sobre o que eu fiz no mês passado. Dei o meu jeito e respondi com muita dificuldade que havia participado de um seminário, passado um final de semana no litoral e saído bastante com os amigos pelos bares da cidade. Tudo isso em inglês. No meu caso, um inglês torturado.
A regra foi a mesma para os outros alunos. Todo mundo com respostas meio óbvias, procurando sempre os verbos mais fáceis de serem utilizados. Uns falavam sobre os jantares outros sobre as viagens, os passeios mais singelos e por aí foi.
Em determinado momento, a “pergunta/exercício” foi dirigida para a aluna que estava sentada à minha esquerda. De uma maneira estranha, ela sempre me chamou atenção. Era uma mulher bonita, porém com aparência tristonha. Vestia sempre roupas igualmente tristes e discretas. Seus olhos não diziam nada. Os olhos pareciam cumprir apenas uma tarefa funcional. Serviam apenas para ver, nada mais. Eram olhos passivos. Não expressavam nada. Na verdade, tudo naquela mulher aparentava ser funcional, quando não paralisado. O corte de cabelo, a postura, o caminhar, a maneira como cumprimentava as pessoas.
A professora perguntou:
- O que você fez na semana passada?
A aluna respondeu, a princípio concentrando-se para “acertar” os verbos:
- Levei meus filhos à escola. Busquei meus filhos na escola. Levei-os à natação. Fiz compra no supermercado e … acho que só.
A professora continua:
- O que você fez ontem?
- Levei meus filhos à escola. Busquei meus filhos na escola. Levei-os à natação e ao judô. Respondeu a aluna.
A professora não ficou satisfeita. Parecia ter ligado um botão e iniciou a operar na “função sacana”.
- Mas você não fez mais nada? Perguntou a teacher.
- Fiz jantar para meu marido que chegou tarde do trabalho. E… só. Disse a moça agora com voz embargada e trêmula.
A professora ligou a função “sacana pra caralho”.
- Você não saiu para um restaurante, um cinema, ou uma caminhada no quarteirão de casa. Não fez nada por você?
- BUÁÁÁÁÁAÁ! A aluna começou a chorar compulsivamente. Era um choro grave. Ela soltava tudo de uma vez. Fungava o nariz, limpava o que escapava na manga da camisa. Era um choro que saia de dentro do peito.
A moça tentou se controlar. Eu não sabia como me comportar. Lembro-me sempre dessa situação. O que se deve fazer com um ser humano que começa a chorar, aparentando muita tristeza, a menos de um metro de você?
Não sabia se esboçava algum afago. Se tocava a mão levemente em suas costas com algum gesto de carinho fraterno. Achei melhor não. Em geral sou carinhoso com meus amigos, inclusive com os homens. Mas naquele caso pareceria assédio. Pensei inclusive em convidar ela para almoçar no restaurante árabe ao lado da escola. Mas também decidi que não. Podia soar como sacanagem da minha parte também. Embora não fosse. Mas certamente pareceria. Pensei também que ela não aceitaria, dizendo que precisava buscar seus filhos na aula de esgrima ou coisa assim.
Eu nunca me esqueço desse caso. Ele me faz pensar em como devemos nos comportar ao nos depararmos com uma pessoa chorando compulsivamente nos espaços públicos. O que seria melhor? Fingir indiferença? Estar efetivamente indiferente? Forçar-se ou acostumar-se a estar indiferente? Seria muito pior ser indiscreto e invasivo se intrometer na vida privada da pessoa?
Certa vez eu me vi chorando numa praia. Foi um período muito triste na minha vida. Não chorava por nenhuma decepção amorosa. No meu caso estava deprimido mesmo. Havia interrompido subitamente as pílulas antidepressivas, algo que dizem não ser recomendável pelos médicos. Tinha jogado todo o medicamento fora no vaso sanitário. Larguei tudo e fui ao Rio de Janeiro curtir uma praia. Em dado momento achei que aquilo podia funcionar melhor do que qualquer remédio farmacêutico. Cheguei ao Rio horas depois. O dia era lindo. Céu azul sem nenhuma nuvem no céu. Fui à Ipanema. Aluguei uma cadeira e um guarda-sol. Pedi uma cerveja. Estava lá na Cidade Maravilhosa, de frente para o Oceano Atlântico. Tudo muito bonito. As pessoas praticavam esporte. Pareciam felizes. Puta que pariu me bateu uma tristeza terrível. Era algo que doía fisicamente. Me deparei com coisas do passado. Enfrentei sem massagem todos os fantasmas. Tirei a sujeira do tapete. Parei de tentar me convencer que tudo estava bem. Não estava. Rejeitei a ideia de destino, que as coisas ruins na minha vida existiam porque eu tinha que passar por aquilo. Mentira! Efetivamente haviam pessoas muito mais felizes que eu. Melhores do que eu. Senti inveja da felicidade alheia. Passei a acreditar que eles sim foram muito protegidos. Eu não tinha sido protegido de nada. Deparei-me com minha desgraça. Aquela praia linda, com céu e mar azul, passou a ser cinza. Lembrei-me daquela música do Tom Jobim chamada “Inútil Paisagem”. Chorei muito. Soluçava. Fazia isso na frente dos outros. O choro saia como se fosse um vômito. Simplesmente, não podia controlar. As pessoas me olhavam de canto, depois desviavam o olhar. Era constrangedor.
Efetivamente, naquele momento, eu não queria que ninguém viesse me acalantar. Que ninguém viesse me perguntar o que se passava. Apenas tinha que passar por aquilo. E de fato tudo passou. Foi um período. Não quero pensar muito nisso agora. Já passou. Aprendi a construir o meu espaço e mandar ao caralho quem não me respeita. Eu me respeito. Hoje escrevo porque aprendi a dar importância para mim mesmo. Eu não me dava importância. Agora dou. Já passou. Ainda bem.
Mas a pergunta fica. Como agir quando vemos uma pessoa chorando no ônibus ou no metrô? Esses dias vi uma moça sentada na calçada chorando muito. É foda. Não sei como agir.
A professora interrompeu a aula por alguns instantes. A aluna conseguiu se recompor. A teacher não se deu por satisfeita. Escolheu outra pessoa para fazer a mesma pergunta. Era uma mulher com mais de cinquenta anos, sempre muito sorridente e festiva.
- O que você fez no seu final de semana?
- Eu fui a um restaurante francês com minhas amigas. Era um restaurante muito bom. Depois fui a uma discoteca, a The History, toca muito flash back, foram vários amigos. Ficamos lá até o dia amanhecer. Eu posso fazer isso porque sou divorciada. I’m Divorced.
- BUAAAAAAAAAA! - O choro veio com tudo no meu ouvido esquerdo
A moça abandonou o idioma inglês e começou a falar tudo em português:
- Eu vou me divorciar. Eu preciso me divorciar. Eu não tenho vida. Buaaaaaaa. Eu vou fazer isso.
Quando terminou a aula, a moça agarrou os livros, saiu correndo, pegou o carro na garagem e foi embora apressada.
Tempos depois encontrei a professora no ônibus, perto do Hospital das Clínicas. Perguntei se ela ainda dava aulas de inglês. Ela disse que não. Que dava aulas até terminar o estágio em psicanálise. Agora estava abrindo a própria clínica, então não daria mais aulas. Ah tá, eu respondi

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