quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Vovó, o que é vagina?


A vovó segurava forte a mão do menino para que ele não caísse.
Ajudei a sustentar o menino pelo braço enquanto ele se contorcia para passar por debaixo da catraca do ônibus. Era uma criança muito bonita de mais ou menos uns quatro anos. Usava o uniforme da escolinha.
Sentaram-se bem atrás de mim. O menino tagarelava a todo instante e comentava as diferentes paisagens dizendo “o que é isso” ou “o que é aquilo”.
Em dado momento o menino perguntou em voz alta.
-Vovó, como os bebês vão parar dentro da barriga das mamães?
A avó procurou responder rapidamente para dar conta do recado sem prolongar o assunto:
- É Deus que põe lá dentro.
O menino insiste em resolver a questão:
- Mas como Deus coloca La dentro, é mágica?
- Não Gabriel, isto é segredo. Ele não conta!
O ônibus balançava de um lado para outro e o menino ficou alguns instantes em silêncio. Pensei que ele deveria receber uma resposta mais convincente, mas por outro lado percebi o apuro em que se metera a avó. Haveria outro momento para que o pequeno Gabriel soubesse de onde vêm os bebês, além daquele em meio ao transporte coletivo com todos os passageiros ouvindo e avaliando as respostas da pobre senhora.
Depois de alguns minutos o menino volta a perguntar;
- Vovó, Saci Pererê existe?
- Não Gabriel. O Saci é de mentirinha.
O menino continua:
- Vovó, Jesus existe?
- Claro meu filho. Jesus existe sim.
- E o Jesus se lembra de tudo? Perguntou novamente.
- Sim, Jesus lembra-se de tudo. A cabeça dele é como um computador. E ele pode ver todos e ouvir. Tudo ao mesmo tempo. É o Papai do Céu.
- Vovó, então ele me ouve?
- Ouve sim Gabriel.
- PAPAAAAI DO CÉÉÉÉUUUU – Gritou o Gabriel umas três vezes.
A vovó interrompeu os brados do menino e explicou que não era assim que se falava com Deus. Deveria ser na igreja e de joelhos.
Mas o menino logo emendou:
- Vovó, quando eu fizer seis anos Jesus me conta de onde vêm os bebês. Como é que foram parar os bebezinhos na barriga da minha mãe?
- Não Gabriel, é segredo. Já te disse isso antes – Falou a avó, agora com um tom de voz mais impaciente e ríspido.
- Mas vovó, por onde o bebezinho sai?
Agora a velha permaneceu em silêncio. Fingia que não era com ela, enquanto o menino insistia a perguntar por onde o bebezinho sai.
Senti um impulso em me virar para o banco de trás e contar sem rodeios como as coisas realmente acontecem. Mas o menino que deve ter tido alguma discussão sobre isso na escola fez uma última pergunta em voz incrivelmente alta antes de ser calado pela avó:
- Vovó, o que é vagina?


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os rebeldes dos outros

A ditadura de Gadaffi na Líbia parece viver suas últimas horas.

O presidente teve sua residência invadida e até o momento não foi encontrado.

Jornais do mundo todo dão conta de que a capital Trípoli está tomada pelos rebeldes.

Mas quem são estes rebeldes? Estes grupos teriam força para se mobilizarem e destituírem seu presidente?



Os grupos rebeldes foram fomentados com armas e estrutura pelos países mais interessados na queda do ditador. EUA, França e Itália têm grandes interesses neste país rico em petróleo com uma indústria de derivados bem desenvolvida.

Para chegar até a capital da Líbia, os rebeldes contaram com a “pequena” ajuda da ONU e dos ataques aéreos da OTAN que fragilizaram a resistência das forças de governo.

Ao despejar armas e dinheiro na mão destes rebeldes, os EUA cometem o mesmo erro que cometeram anos atrás quando turbinaram a força e o poder de Osama bin Laden na guerra do Afeganistão contra a União Soviética e também de Saddam Hussein na guerra do Iraque contra o Irã, onde os EUA tinham manifestos interesses.

Nos próximos anos, o “mundo ocidental” pode ter novos inimigos com poder, dinheiro e possivelmente Estados que foram fabricados pelo interesse imediato dos paises da OTAM em se apropriar do petróleo do oriente médio.

Aliás, se os europeus e norte-americanos estivessem tão envolvidos em proteger os povos africanos de ditaduras sanguinárias, por que não se preocupam também em intervir nos famintos países governados por tiranos, com guerras civis intermináveis, mas sem uma gota de petróleo?

Se os países ricos se preocupam tanto com os africanos, por que condenaram seus povos a séculos de escravidão e construíram regimes de separação racial em que alguns brancos ficaram com as riquezas sustentadas pelo trabalho de milhões de negros castigados?



Os rebeldes que atendem ao interesse dos governos imperialistas são tratados como heróis. Recebem armas e dinheiro e entram para história como precursores de uma nova era.

Já os rebeldes que ofendem os regimes excludentes e violentos deste sistema econômico decadente são tratados como marginais e são colocados na prisão como bandidos.



Se a ONU e a OTAM utilizassem o mesmo critério nas sanções à Líbia e a Síria, deveriam também apoiar os rebeldes insatisfeitos com seus governos na Grécia, Espanha, Portugal, Inglaterra e Chile.

Ora, o argumento utilizado para as ações militares foi o de proteger os manifestantes de seus governos opressores. O direito de manifestarem seu descontentamento contra os regimes.

A democracia que legitima os governos dos países do “eixo do bem” é representada por partidos políticos financiados pelo capital dos banqueiros e especuladores que mantém este modelo econômico nos Estados que garantem seus lucros, enquanto oprimem seus cidadãos.

Após os protestos em Londres, alguns manifestantes foram condenados a mais de quatro anos de prisão por incitarem a violência. As armas de destruição em massa destes jovens eram nada mais do que mensagens do facebook.



O brasileiro Anderson Fernandes de 22 anos está preso e será condenado pelos saques realizados nas manifestações de Londres. Segundo a acusação, Anderson roubou dois cones de sorvete e um café.

O brasileiro teria entregado os sorvetes às pessoas que passavam pelas ruas, já que não teria gostado do sabor do produto inglês.

Particularmente, não tenho simpatia por nenhuma ditadura. Entendo que qualquer líder que se mantenha indeterminadamente no poder, ainda que seja considerado um herói nacional, compromete seus projetos em nome do poder. Quando um ditador cai, a força de sua figura contamina seus projetos, ainda que estes tenham alguma relevância para a sociedade.

Mas o que está em jogo (e não se iludam), não é a defesa da democracia ou de qualquer outra forma de governo. O que está em disputa é a manutenção da hegemonia dos países do centro.

O método para sustentação desta riqueza neste novo século continua sendo o mesmo de sempre. O roubo puro e simples dos recursos dos países mais fracos.

E agora, com a decadência econômica destas potências velhacas e corroídas, os países emergentes devem abrir bem os olhos.

Inclusive o Brasil.






terça-feira, 16 de agosto de 2011

O desgaste dos técnicos palestrantes


Poucas coisas estavam tão na moda nos anos 90 como palestras motivacionais com pitadas de neurolinguística vulgar.

Esta década foi marcada pelo grande “boom” do mercado de auto-ajuda com livros, filmes e técnicas para superar as adversidades sem eleger nenhum inimigo político como elemento causador das dificuldades da vida cotidiana.

A década começou sob os reflexos da queda do muro de Berlim. A partir de então só existiria um modo de vida predominante e os indivíduos deveriam se adaptar ao “choque de capitalismo” que estaria por vir, modernizando nossas instituições e trazendo as bênçãos do mundo empresarial que exigiria de cada um de nós o máximo de eficiência.

Deveríamos enfrentar os nossos inimigos internos e exorcizar nossos íntimos fantasmas para nos adaptarmos a nova realidade.



Os sindicatos nunca estiveram tão em baixa como neste período. Ao invés de brigar contra o patrão, as pessoas deveriam se preparar para incorporar os valores corporativos e se tornarem partícipes do sucesso empresarial. Além do mais, a fila de desempregados à espera de uma oportunidade no mercado de trabalho estimulava e justificava o crescimento individual como um valor em si mesmo.

Essa moda chegou ao futebol brasileiro no mesmo período.

Os técnicos bem-sucedidos em suas conquistas comportavam-se como executivos e tentavam multiplicar os valores próprios daquele tempo como superação, espírito de equipe e autocontrole para os atletas de suas equipes.

Sem dúvidas, o mais bem sucedido desta geração foi Vanderlei Luxemburgo.

Sempre vestindo um terno, gabava-se de implementar uma nova “filosofia de trabalho” e gostava de se aproveitar dos deslizes verbais dos adversários para motivar seus comandados. Luxemburgo tomou tanto gosto pela tarefa que passou a se comportar mais como um gerente de futebol ou empresário do que treinador.

Mas não restam dúvidas quanto à capacidade de Luxemburgo. Ele tinha ao seu favor o fato de conhecer muito sobre futebol e era muito competente no ofício de treinador.

No entanto, o sucesso de Luxemburgo favoreceu a chegada de toda uma geração de técnicos motivadores e palestrantes.

A preleção destes técnicos era sempre regada a vídeos motivacionais e a um linguajar gerencial.

Neste período, os técnicos “boleiros” icaram fora de moda.

A exceção era Luis Felipe Scolari que ao contrário de seus colegas, usava o agasalho da equipe ao invés do famigerado terno. Felipão até reunia qualidades de um motivador, mas seu modo de trabalho estava mais ligado à mobilização do grupo contra um “inimigo” eventual, que poderia ser o time adversário, a imprensa, a própria torcida, a desconfiança geral ou inclusive os seus próprios dirigentes.

Uma cena comum nas vésperas de decisões de campeonato eram os técnicos utilizando recortes de jornais com as declarações dos adversários para motivação geral do “conjunto de atletas”.



Os sucessos recentes de Muricy Ramalho parecem ter desgastado o discurso polido e cheio de jargões corporativos dos técnicos yuppies.

O próprio Luxemburgo que colecionou fracassos nos últimos anos parece ter percebido que seu antigo discurso se desgastou e arrancou o terno e a gravata, vestindo o agasalho do Flamengo (sua equipe do coração) e retomando o gosto por sua atividade de treinador.

Mano Menezes parece se manter fiel a safra de palestrantes. Seu discurso dá sono.

Mas o técnico campeão mundial do tédio é o Tite.

Nas últimas rodadas, o Corinthians adquiriu a cara de seu treinador. Assistir aos jogos do Corinthians às vezes dá muito sono e suas jogadas são previsíveis como o discurso de Tite. É um nhem nhem nhem danado. Muito papinho. “Fala muito” o Tite.

Esta proclamada “filosofia de trabalho” dos técnicos palestrantes se decompôs. Tal qual os pilares da economia de mercado que só funciona em situações de crise que tendem a ser favorável para pouquíssimos mediante o sacrifício de muitos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O sucesso do seriado Chaves é a falta de vocação capitalista na América Latina.


Desde os anos 80 nos habituamos a assistir no Brasil o programa do Chaves.
É delicioso gargalhar com situações que vimos em repetidos episódios, mas que nos surpreendemos hipnotizados, mesmo já sabendo antecipadamente o final da historinha.
E em toda América Latina ocorre o mesmo. O seriado El Chavo Del Ocho mobiliza a atenção de milhões de pessoas de todas as idades.
Mas qual seria o segredo do Chaves?
Qual o vínculo entre seus espectadores em todo o continente tornando possível que o seriado permaneça tantos anos no ar?
De uma maneira geral, o Brasil absorve pouco conteúdo artístico de seus vizinhos de língua espanhola. Mas por que mesmo sendo dublado, o programa mantém a sua originalidade?
Os povos da América Latina têm uma espécie de origem e de destino compartilhados.
Os personagens do seriado Chaves retratam uma falta de vocação capitalista, muito particular aos nossos povos que séculos atrás sofreram um duro processo colonizador, recebendo de repente, sobre nossas cabeças, uma construção histórica européia que se impôs como um modo de vida estranho às nossas populações que seriam resultado de uma “ninguendade”, como dizia o professor Darcy Ribeiro.

O Chaves é um menino latino americano. Filho de ninguém. Sem origem e sem teto. Sem um lar, vive de favor e de maneira precária sob os “benefícios” de quem permite que ele se instale em uma terra que não é sua. Mantém uma relação de afetividade com seus algozes que vez por outra também se apresentam como seus protetores.
O grande personagem do seriado é o Seu Madruga. Vagabundo, não consegue incorporar o trabalho enquanto um valor e uma virtude. Ocasionalmente, atua como marceneiro ou como artesão, mas não consegue se adaptar à realidade de trabalhador industrial. Sua filha Chiquinha é rebelde, malcriada e irreverente, faz sempre questão de demonstrar seu incômodo com a realidade em que está inserida.

Madruga é perseguido pelo dono da pensão. O senhor Barriga revela o outro lado da falta de vocação capitalista. Faz vistas grossas aos inadimplentes e na incapacidade ou impossibilidade de receber os aluguéis em dia não consegue melhorar a estrutura da vila que permanece como um cortiço. Pode ser também que ele prefira estabelecer um acordo tácito com seus inquilinos. Demonstra uma aparente compreensão com os problemas financeiros dos moradores se colocando na figura de protetor, o que o desobriga de ser eficiente na manutenção da vila que está sempre precária.
A Dona Florinda e o Quico querem destacar sua origem supostamente diferenciada dos demais inquilinos. Compartilham o mesmo território e a mesma realidade, mas eles nunca se aliam aos seus vizinhos e viram as costas para suas demandas, ainda que porventura se beneficiassem desta aliança. Tudo por conta do medo de se misturar a esta gentalha. Gentalha, gentalha.

A Dona Florinda prefere a companhia do Professor Girafales. Arrogante e nada modesto, quando está fora da sala de aula, faz questão de usar o conhecimento como elemento de superioridade sobre os demais. No entanto, quando está na sala de aula se dá conta de como as mazelas sociais e a carência impedem seus alunos de absorverem suas lições e se desespera, ficando inevitavelmente frustrado.
O seriado Chaves, além de tudo tem situações engraçadíssimas e diálogo simples. Há espaço para a fantasia e para as superstições quando os personagens temem os fantasmas e a bruxa do 71.
 Estes e outros aspectos revelam muito sutilmente como nós, latino americanos compartilhamos de um mesmo incômodo original e buscamos de alguma maneira encontrar a felicidade construindo um modo de vida que nos faça sentido, ainda que de maneira muito precária.



  




sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Populações nas ruas contra o noeliberalismo. Globo chama manifestantes de marginais


A queda do telhado neoliberal começa a apresentar seus efeitos mais visíveis.
Os governos dos países ricos passaram os últimos quatro anos cobrindo o rombo deixado pelos banqueiros e especuladores. Foram injetados trilhões de dólares para salvamento de bancos e em investimentos para suprir a demanda privada que se retraiu nos últimos anos.
Nenhum governo dos países considerados desenvolvidos optou por romper com o modelo econômico neoliberal. Ao invés de investimentos sociais  para as populações provocarem um reaquecimento da produção, a grande maioria dos nossos líderes mundiais optou por pagar a fatura dos bancos que quebraram especulando com o dinheiro alheio.
Os papas do neoliberalismo sempre defenderam que o Estado não deveria interferir no mercado que se auto-regularia. No entanto, tão logo estourou a crise de 2008, justamente por falta de regulação no mercado financeiro, foram os governos que tiveram de pagar a conta da orgia capitalista. As perdas nas bolsas de valores foram socializadas. Neste especial momento, o Estado foi muito útil aos grandes capitalistas e sua operação de socorro não foi acusada de assistencialista.
Como vimos, as populações continuaram endividadas enquanto os bancos foram salvos.
Esta dinheirama represada nos grandes bancos criou a base de uma nova crise muito mais grave. As bolhas especulativas borbulham de maneira muito mais voraz.
E os governos?
Ora, tão logo os grandes especuladores puderam recuperar sua condição de manipular a economia global, os governos foram acusados de se endividarem.
A crise de 2008 que seria uma crise do mercado financeiro especulativo agora é tratada pela grande mídia global como uma crise de endividamento dos Estados.
Mas como os governos se endividaram? Claro que não foram com investimentos sociais e infra-estrutura. Foi justamente cobrindo o rombo de alguns dos grupos mais ricos do planeta.
Agora exigem que os governos se humilhem e cumpram suas metas de austeridade fiscal que tem um efeito inevitável de grave recessão.
As populações vivem com níveis elevados de desemprego e falta de perspectiva. Programas sociais estão sendo desmantelados, sobretudo na Europa.
O resultado deste discurso de que o mercado é bom e os governos são maus é o visível crescimento dos partidos e grupos de extrema direita, racistas e xenofóbicos. Estes grupos cresceram rapidamente porque seu discurso preconceituoso e vazio independe de coerência política.
Os pobres europeus estão cada dia mais esmagados. Seja pela condição econômica, ou pela perseguição social que sofrem. Ao invés de os especuladores serem culpados pela crise, são os pobres e imigrantes acusados de ocuparem os aparelhos de proteção do Estado.

Agora a população está nas ruas da Grécia, Espanha e Inglaterra.
Mais um jovem pobre foi assassinado pela mesma polícia que anos atrás executou o emigrante brasileiro Jean Charles.
Para a mídia brasileira, as manifestações desta semana em Londres foram obras de marginais que aproveitaram a oportunidade para fazer arruaça.
A verdade é que este foi apenas o estopim de uma grande revolta social contra a injustiça social e econômica.
O Chile é sem dúvidas o país sul americano em que o neoliberalismo proliferou há mais tempo e com mais intensidade.
Não é a toa que esta sendo palco de manifestações estudantis apoiadas por toda a sociedade chilena que exige nada mais do que educação gratuita.
Isso é muito?
O pedido de justiça dos londrinos é muito?
Pedir emprego e dignidade é muito?
Alguns se mostram inconformados com programas sociais e de transferência de renda. Mas fecham os olhos para os trilhões que saem dos cofres públicos direto para os banqueiros e especuladores.
Um dinheiro que cheira sangue, suor e lágrimas dos trabalhadores do mundo.
Se manifestar contra as injustiças é coisa de marginal?
Para a Globo News sim. Veja a resposta do sociólogo Silvio Caccia Bava que murchou o ímpeto fascista dos empregados da Globo.




quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Entrevista: Heiner Flassbeck - Jornal Folha de São Paulo

Segue a entrevista publicada hoje no jornal Folha de São Paulo.

Considero leitura obrigatória para entender as causas e efeitos da crise global.

Existe o desejo por parte de alguns teóricos do neoliberalismo de transformar a crise do mercado financeiro especulativo em "crise da dívida dos governos". Cria-se a tese de que os governos são ruins e os mercados são bons.

Ora, a dívida crescente dos Estados nada mais é por conta dos socorros ao rombo dos banqueiros e especuladores que socializaram suas perdas.

Agora, estes "gurus" da economia de mercado querem culpar os gastos dos governos pela crise global. Como se estes gastos tivessem sido frutos de investimentos sociais.

Boa Leitura

RC

11/08/2011 - 02h01

Crise é do mercado financeiro, não de governos, diz economista

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO


A crise atual é fruto do mercado financeiro, não de governos mal comportados. O que está havendo é um sucessivo estouro de bolhas, e os governos deveriam ampliar seus deficits, não cortá-los. Para isso, os políticos precisam se emancipar de Wall Street.
A visão é de Heiner Flassbeck, 60, diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Unctad (Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento). Para o economista, que foi vice-ministro de Finanças da Alemanha (1998-1999), a recessão de agora pode ser pior e seguir o formato da japonesa.
Para ele é essencial enxugar o mercado financeiro e lembrar uma coisa simples: "os salários são o componente mais importante para a demanda privada e o capitalismo não funciona sem aumento do salário dos trabalhadores".
Flassbeck, professor da Universidade de Hamburgo, que classifica como ridículas as agências de risco, estará no Brasil na próxima semana para um seminário promovido pelo Centro Internacional Celso Furtado.
*
Folha - Como o sr. avalia o rebaixamento dos EUA pela S&P?
Heiner Flassbeck -­ Essas agências de risco estão ficando cada vez mais ridículas. No final, se pode dizer que o mundo todo está indo à bancarrota, contra Vênus, Marte, a Lua. O maior, o mais importante e o mais sólido Estado do mundo sob perigo de quebra! Então tudo pode quebrar! E daí? O que isso muda? É ridículo.
E por que as agências são tão valorizadas?
Não sei, porque a maioria das pessoas é maluca (risos). Algumas pessoas nas agências de risco decidem sobre o destino da economia mundial. Como se pode tomar isso seriamente? Estamos indo para uma recessão e o que precisamos é de deficits maiores para os governos, para que possamos sair da recessão. E para as agências não se pode fazer essa coisa razoável. O que fazer então? Não se deve acreditar em Deus, mas nas agências de classificação de risco e fazer o que elas pedem, mesmo que seja tolo? É uma piada, mas muitas pessoas levam a sério.
Os governos deveriam rebaixar as agências?
Sim, eles deveriam dizer: "esqueçam isso, essas pessoas ridículas". [O presidente dos EUA, Barack] Obama deveria ter dito que não se importa nenhum pouco com essas pessoas ridículas das agências de risco.
Qual a verdadeira natureza da crise atual?
Os mercados produzem bolhas e, em certo momento, todas as bolhas explodem. Nós temos uma economia de bolhas. A economia cresce porque temos essas bolhas, não o contrário. Não há bolhas por causa do crescimento, mas há crescimento por causa das bolhas.
Nada mudou nos mercados financeiros desde a crise de 2008, mas todos estavam felizes por causa da aparente recuperação; os bancos estavam tendo lucro novamente. Mas todos os lucros dos bancos, pelo menos nos países industrializados, eram apenas resultado das novas bolhas.
O que acontece agora e que há um grande perigo de que todas as novas bolhas --de commodities, moedas, ações, patrimônio-- estourem em algum momento e os bancos ficarão com a mesma dificuldade de 2008.
O problema está ficando pior?
Está ficando pior, pois agora todos os governos estão tentando reduzir os seus deficits, 15% a 20% maiores em comparação com a última crise. Por isso será mais difícil para eles lutar contra uma nova recessão. Assim, há um nervosismo maior.
A turbulência tem a ver apenas com o medo de recessão?
Há um grande perigo de uma recessão mundial. Nos EUA, na Europa e no Japão (60% a 70% do PIB mundial) não temos recuperação sustentável: o emprego está estagnado, os salários não estão subindo, então não há consumo privado, e todos querem exportar. O resto do mundo não consegue crescer em ritmo suficiente para absorver essas exportações. Não funciona.
Nos últimos 30 anos a agenda neoliberal nos fez acreditar que tudo deveria ser flexibilizado: o mercado de trabalho, o sistema inteiro. Mas agora está tudo tão flexível que, quando o desemprego cresce como EUA e os salários caem, a economia não se recupera. Essa nova flexibilização vai matar a economia de mercado.
E qual é saída?
É preciso fazer uma forte regulação nos mercados financeiros: não permitir que os bancos façam o jogo de apostas de cassino, forçar os bancos a fazerem investimentos reais. Precisamos de um sistema monetário global totalmente diferente, no qual as moedas não sejam determinadas pelo mercado. Precisamos de uma nova regulamentação global para as commodities, na qual os seus preços não sejam mais determinados pelo mercado financeiro.
Os bancos manipulam preços de commodities e de moedas, como o real, nos mercados financeiros para ganhar dinheiro nos próximos dois, três anos. Não estão interessados em crescimento de longo prazo. Isso precisa ser mudado.
Por que os governos não fazem nada a respeito?
Muitos políticos não entendem o que realmente está acontecendo. Acham que gestores de bancos possam ser conselheiros de políticos. Isso não funciona. Os políticos precisam se emancipar disso. Precisamos de uma geração diferente de políticos, que não dependa do dinheiro de Wall Street e que pense no melhor para a população.
Os mercados estão forçando um novo resgate com dinheiro público, socialização das perdas?
Com a situação política nos EUA, é muito difícil imaginar que eles fariam um novo resgate. O governo está totalmente bloqueado pelo Congresso. Muitos governos vão hesitar em salvar os bancos. Por isso essa recessão pode ser pior e mais profunda do que a anterior.
O cenário mais provável talvez seja o de uma recessão japonesa, com estagnação geral, deflação. Demorará mais até que os governos comecem a entender que eles não podem continuar salvando e salvando. Mas que devem levar em conta o que acontece na economia real. A ideologia dominante diz que os governos são ruins e os mercados são bons. E, enquanto se acreditar nessa coisa primitiva, não vai funcionar
E os países em desenvolvimento?
Até estão indo bem, crescendo, mas não têm tamanho suficiente para tirar o mundo do atoleiro. Eles dependem dos países industrializados também. Podemos ir para uma fase longa de estagnação e deflação como o Japão nos últimos 20 anos. É o maior perigo.
Uma recessão pior do que a de 1929?
Eu não diria pior, mas pelo menos comparável. Da última vez, a recessão foi contida por causa da reação rápida dos governos. Mas agora não se pode esperar muito das políticas monetárias. Precisa ser do lado da política fiscal, mas ela está bloqueada politicamente. Isso é que deixa a situação tão difícil. Veja o Japão nos últimos 20 anos: sempre que o governo tentou cortar o deficit, a crise se aprofundou e o deficit aumentou. Assim, o Japão alcançou a maior dívida pública do mundo: mais de 200% do PIB.
Essa recessão seria mais parecida com a 1929 ou com a do final do século 19, que significou a queda do Reino Unido e a ascensão dos EUA e da Alemanha?
Mais com 1929, pois estamos em perigo de fazer o mesmo erro, cortando gastos públicos no meio de uma recessão.
Mas há economistas ortodoxos que argumentam que os governos deveriam cortar o deficit, que a crise significa o fim de uma era de keynesianismo?
Keynes foi recém recuperado e agora estão ansiosos por matá-lo novamente. Por isso eles chamam a crise, que foi claramente causada pelos mercados financeiros internacionais e não pelos governos, de "crise da dívida dos governos", "crise da dívida". Não tem nada a ver com crise da dívida. Os governos pagaram alguns jogadores absolutamente irresponsáveis do mercado financeiro e por isso a dívida dos governos é maior do que há cinco anos. Não há outra razão, não há mau comportamento de governos.
Está claro que economistas ortodoxos não gostam da ideia de que os mercados não tiveram um bom comportamento, que fizeram coisas erradas, porque os mercados são Deus e estão sempre certos. Eles vêm com a explicação de que é só problema dos governos, não tem nada a ver com os mercados, que não existe mau comportamento dos mercados, que a culpa é só dos governos. É uma luta ideológica contra os governos. Querem trazer os governos para baixo, enriquecer eles próprios, sei lá. Não tem nada a ver com pesquisa acadêmica séria.
O que o capitalismo pode fazer para gerar crescimento no mundo?
A coisa mais simples e mais crucial é que os salários médios das pessoas, dos trabalhadores precisam subir em linha com a produtividade da economia. É uma regra simples, que não é seguida em muitos países. Não foi seguida na América Latina no passado; hoje está melhor. Na Ásia eles entenderam isso, e os salários estão crescendo. Mas na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, os salários não estão crescendo. Isso não funciona, os salários são o componente mais importante para a demanda privada. O capitalismo não funciona sem aumento do salário dos trabalhadores.
O tamanho sistema financeiro nos próximos anos deve ficar menor?
O sistema financeiro precisa encolher. É a grande tarefa que os políticos têm: encolher o sistema financeiro para um tamanho que seja razoável, que tenha relação com a economia e que tire o sistema do cassino.
Qual sua avaliação do movimento no mercado europeu de no nesses dias?
O BCE (Banco Central Europeu) fez uma coisa razoável, comprando títulos italianos e espanhóis. Mas isso não pode ser feito por muito tempo. No longo prazo, a única solução para a Europa é que a inflação alemã e os salários subam mais e as outras inflações declinem, fazendo com que o grande desnível entre competitividades dos dois grupos de países diminua no decorrer do tempo.
Como está a situação na Europa?
Ainda não resolvemos o problema principal da zona do euro que é a diferença de inflação entre a Alemanha e os países do sul da Europa. A Alemanha se recusa a aceitar que esse é o principal problema por razões políticas. Sou cético que de haja uma solução. Mais países vão entrar em dificuldades Itália e Espanha estão estagnadas, e se pede cortes de gastos governamentais. É maluco.
Se não há crescimento e o governo corta gastos e aumenta impostos isso leva à recessão. A Grécia não reduziu o deficit não porque não desejava, mas porque entrou numa recessão muito mais profunda do que o esperado. As receitas de impostos caíram e o deficit não pode ser reduzido.
Muitos dizem que a Itália e a Grécia gastaram de mais e, por isso, estão sendo punidas. Qual sua visão?
A moeda na Europa tem uma regra simples: é que todos devem ter a mesma inflação de 2%. Mas nos últimos dez anos a Alemanha teve uma inflação de 1%, e Espanha, Portugal, Grécia, Itália tiveram uma inflação em torno de 2,5%. Quem fez certo e quem fez errado? Alguns viveram acima, outros abaixo da meta. Não há como culpar um lado. A Alemanha violou a meta de 2% mais do que Grécia, Espanha, Portugal e Itália. Isso não é discutido seriamente porque a Alemanha faz um jogo de poder contra os outros países e tenta impedir essa discussão.
Qual sua visão do Brasil?
Acho que o Brasil está muito melhor agora do que em recuperações anteriores. Os salários estão crescendo. O que continua sendo um problema é a taxa de juros muito alta e a valorização do real é um grande perigo. Mas não há como culpar o Brasil: é o jogo do poder

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O enigma da governabilidade



Desde o impeachment de Fernando Collor, difundiu-se um consenso tácito de que um presidente sem uma sólida base de apoio no legislativo perderia seu mandato.
Itamar Franco que assumiu a presidência após o afastamento de Collor compôs o seu governo com quase todos os grandes partidos.
Fernando Henrique se elegeu em aliança entre o PSDB e o PFL, causando na ocasião perplexidade entre alguns analistas políticos. Durante todo o seu mandato, governou também com o PMDB que lhe conferiu ampla maioria no congresso que foi presidido por figuras conhecidas como José Sarney e Antônio Carlos Magalhães. Esta confortável maioria possibilitou reformas constitucionais que possibilitaram as quebras do monopólio estatal do petróleo e das telecomunicações e as privatizações destes setores. FHC aprovou no congresso a emenda que permitiu sua reeleição e conseguiu evitar CPIs delicadas contra seu governo.
Quando se discutia a possibilidade de Lula ser eleito presidente do Brasil, ouvia-se por todos os cantos que ele não conseguiria se manter no poder e haveria dúvidas quanto a governabilidade do país.
Ainda que ninguém falasse a respeito, a memória do impeachment de Collor era viva e assombrava os “príncipes” que assumiram o Palácio do Planalto. Até porque, antes de Collor, o último presidente eleito por voto direto havia renunciado ao cargo diante de uma crise política. Jânio Quadros fez um cálculo político equivocado na tentativa de driblar sua minoria no legislativo.
O silencioso consenso de que Collor caiu porque não estava vinculado a um partido político forte e não conseguiu compor maioria para garantir sua governabilidade está parcialmente correto. Ou parcialmente equivocado.
Embora seja verdade que Collor não foi hábil na construção de uma base de apoio político segura, seu afastamento só ocorreu por absoluta rejeição popular que se refletiu ao final em grandes manifestações nas ruas.
Se Collor não tinha um partido forte para articular sua maioria no legislativo, também não tinha penetração e representatividade na sociedade brasileira, em especial nos movimentos sociais.
Alguns tentam diminuir a importância das manifestações populares para o impeachment de Collor, mas elas foram decisivas para diminuir o espaço dos acordos políticos e acertos entre governo e oligarquia para manter um presidente rejeitado.

A eleição de Collor foi resultado de um factóide criado pela grande imprensa que se apavorava com a hipótese de Leonel Brizola assumir a presidência. A votação que recebeu em segundo turno contra Lula – com um esforço notável da Rede Globo – não tinha equivalência na sociedade.
Os primeiros anos de Lula na presidência foram de construção das condições políticas para as reformas que viriam num próximo momento.
Mas as trapalhadas na formação da maioria política no congresso desembocaram na crise de 2005 que ficou conhecida como mensalão.
Esta frágil maioria não seria suficiente para sustentar o mandato de Lula diante do primeiro grande ataque midiático contra seu governo.

Lula não se manteve no poder somente porque tinha uma maioria mais consolidada que Collor. Lula superou a crise e se tornou muito mais forte porque tinha apoio popular.
Aqueles que acreditavam na máxima de que a população é massa de manobra se frustraram ao ver que mesmo com o circo televisivo montado a popularidade de Lula se sustentou e a abstração chamada “sociedade civil” não pôde existir meramente em torno de um sentimento propagandeado, mas sem representação nos movimentos organizados.

Não foi a toa que os anos seguintes à crise de 2005 foram os melhores do governo Lula. Embora tenham sido tomadas todas as providências para reconstrução da maioria no legislativo, o segundo mandato de Lula foi muito bem sucedido pela ampla aprovação popular, resultado da retomada do desenvolvimento econômico e da maneira corajosa como o Brasil enfrentou a crise global de 2008.
Ao contrário do que alguns pragmáticos proclamam, não foi a estabilidade política que gerou a popularidade de Lula, mas o imenso apoio de Lula que possibilitou a consolidação de uma maioria tão ampla. Ou não é verdade que nas eleições do ano passado, políticos de todos os partidos queriam colocar a foto de Lula em suas propagandas eleitorais, inclusive o José Serra?
A presidenta Dilma faz muito bem em exigir eficiência, responsabilidade e honestidade de seus ministros. Independentemente se estes componham sua maioria política.
O maior erro político do governo Dilma seria se afastar da população que a elegeu. Esta sim é fiadora de sua governabilidade.
O fantasma do impeachment deve ser devidamente entendido para ser exorcizado. Collor não caiu somente porque não tinha maioria parlamentar. Collor caiu porque não tinha representação na sociedade e a população rejeitou seu governo pelo seqüestro da riqueza nacional e principalmente pela inauguração das políticas neoliberais no Brasil.
A população não foi às ruas contra Collor porque foi convidada pela televisão. Ao contrário, a televisão foi quem elegeu Collor.
Da mesma forma, a televisão não foi suficiente para convencer o povo a se manifestar contra seu presidente em 2005 porque de uma maneira muito especial o povo entendeu o que estava em jogo naquele momento.
Dilma não deve aceitar chantagem de nenhuma caterva em nome da famigerada governabilidade.

sábado, 6 de agosto de 2011

Quem se importa com a Somália?



A Somália e demais países do chamado “chifre africano” sofrem uma das piores crises de fome de sua história, ocasionada por uma das piores secas dos últimos anos além de uma guerra civil regada a contrabando de armas exportadas por respeitáveis homens de negócios.
Mas quem se importa?
Neste momento os maiores chefes de Estado, com o pretexto de socorrer o mundo da “crise mundial”, jorram trilhões de dólares nas mãos de banqueiros e especuladores para acalmar a sanha do famigerado MERCADO.
Esta crise foi criada pela farra especulativa.
Os Estados se endividaram em operações de salvamento dos mercados globais. Quebraram suas economias para salvar os bilionários banqueiros.
Agora, os grandes capitalistas exigem a “austeridade fiscal” dos países quebrados.
Querem continuar sendo os únicos beneficiários da economia global enquanto milhões de desempregados perambulam pelas ruas da Europa e os imigrantes africanos, árabes e latinos são acusados pela degradação de suas economias.
Melhor seria para a humanidade a ruptura deste modelo econômico que boicota a produção em benefício dos grandes monetaristas.
O dinheiro despejado pelos Estados desregulou o câmbio dos países emergentes, mas não foi suficiente para salvar o capitalismo global.
Este dinheiro que ficou represado com os grandes bancos seria suficiente para acabar com a fome no mundo.
Mas esta não parece ser a prioridade da humanidade neste momento.
Quem se importa com a Somália?


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O futuro da hegemonia estadunidense. Entrevista com o Professor Flávio Rocha de Oliveira



Entrevistei o Professor Flávio Rocha de Oliveira, Professor do Curso de Relações Internacionais da UNIFESP. Pesquisador nas áreas de Segurança Internacional e Análise de Política Externa.

A idéia é discutir de maneira informal, porém com alguma profundidade, o futuro da hegemonia dos Estados Unidos após a crise econômica de 2008 e a chegada de Obama à Casa Branca.
O Professor fala sobre o comportamento geoestratégico da maior potência global com o pano de fundo da concorrência chinesa, crise econômica mundial e avanço das forças políticas de direita e extrema direita nos países do centro.



Blog - É possível pontuar quais as principais transformações na política externa norte-americana após a posse do presidente Obama?
O Presidente Obama assumiu o governo nos EUA embalado numa retórica mudancista em relação ao seu predecessor, George Bush, que teve ampla simpatia por parte de setores progressistas nos EUA e no resto do mundo. A idéia básica é que as políticas fortemente unilateralistas dos Estados Unidos seriam substituídas por uma maior consulta com outros países, e em especial os aliados europeus, sobre questões relevantes do cenário internacional, como o combate ao terrorismo, a situação no Oriente Médio e o gerenciamento do sistema econômico mundial. Um exemplo dessa expectativa gerada foi o Prêmio Nobel da Paz que ele recebeu. Esse prêmio foi essencialmente político, e sinalizou um desejo, por parte dos europeus (ou de certos setores na Europa), de serem mais ouvidos no tratamento de problemas mundiais relevantes.
Pois bem, o problema é que a expectativa colide com a realidade. Nesse caso, a realidade foi aquela herdada de oito anos de governo republicano: duas ocupações militares problemáticas na Ásia (Iraque e Afeganistão), um aumento forte nos gastos militares, um conjunto de políticas econômicas que desregulamentaram fortemente os mercados e que criaram as condições para o déficit monstruoso dos EUA e, finalmente, uma crise econômica que abalou o mercado financeiro mundial. De um ponto de vista mais estrutural ainda, há o fato de que os Estados Unidos são a hegemonia global que possui interesses nos quatro cantos do mundo, e tem que pagar o preço de administrar essa realidade levando em consideração os interesses e as divergências de vários outros povos, Estados e grupos no sistema internacional.
A partir dessa herança, o governo Obama não possuiu muita margem de manobra. Se observarmos a evolução das coisas no setor de segurança e de relações exteriores, a retórica obamista foi, de fato, mais multilateral. Houve uma maior disposição de conversar com a Europa sobre questões espinhosas, como o caso do programa nuclear iraniano; houve uma abertura para reconhecimento da importância de potências emergentes no cenário mundial, como é o caso da Índia e, em menor escala, do Brasil. Mas a prática política norte-americana continuou presa a estrutura hegemônica historicamente criada. Por exemplo: a OTAN não se mexe sem o aval de Washington; qualquer tentativa de reconhecimento do Estado Palestino, ou de condenação ao Estado de Israel, é bloqueada na ONU por parte dos EUA. Finalmente, eles continuam agindo sem consultar seus aliados o Iraque (a agenda de retirada é deles) e no Afeganistão (o governo Obama chancelou os resultados da eleição afegã, que foram reconhecidamente roubados).
Há alguns sinais de mudança, mas que teremos que esperar mais alguns anos para ver se configuram uma questão passageira desse governo, ou se são sinais de transformação mais profunda dos próprios Estados Unidos. Um exemplo, e forte: o tratamento dispensado ao Estado de Israel. Quem acompanha a imprensa internacional, e especialmente a israelense, percebe que as relações entre os dois países não passam pelo seu melhor momento. O governo Obama tem feito o possível para passar a idéia de que não fornecerá um cheque em branco para os israelenses, ao mesmo tempo em que sinaliza que são grandes aliados dos EUA. O governo Obama não perde uma oportunidade de declarar que os israelenses tem que resolver seus problemas com os palestinos. Na última semana, o Conselho de Segurança Nacional dos EUA recebeu uma delegação israelense de ex-diplomatas e de generais reformados que são extremamente críticos da visão do premiê Netanyahu a respeito dos palestinos.
Essa delegação disse, taxativamente, que Israel deve reconhecer rapidamente o Estado Palestino, que as fronteiras israelenses não serão indefensáveis se isso acontecer. E advertiram: em menos de 30 anos Israel não continuará sendo um estado democrático e judeu se continuar ocupando os territórios palestinos por uma razão muito simples que é o crescimento demográfico. A taxa de natalidade palestina e dos árabes israelenses é superior a dos cidadãos judeus, e nesse prazo de tempo isso vai gerar uma distorção parecida com o que aconteceu na África do Sul do Apartheid: uma maioria dominada por uma minoria repressiva.





Blog – A crise econômica iniciada em 2008, se continuar agravando pode refletir em uma perda de poder geopolítico nos países do centro.
R.: Sim, pode. Esses países podem perder capacidade de gerenciar a economia mundial. Podem perder credibilidade frente a outros povos (devemos lembrar que a eleição da francesa Cristiane Lagarde à chefia do FMI foi contestada com a candidatura de um mexicano), e, caso mais complicado, em relação aos próprios cidadãos. A crise de confiança principal emerge dos cidadãos americanos, franceses, italianos, etc.
Agora, temos que matizar. A perda de poder geopolítico não significa que os países do centro perdem em bloco. Alguns tem mais margem de manobra do que outros e conseguirão minimizar as perdas e, mesmo, aumentar sua esfera de influência em direção a outras realidades geopolíticas. Um caso é o da Alemanha. Ela tem sido afetada pelas crises econômicas dos EUA e da Grécia/Europa. Como maior economia europeia, o que ela tem feito? Aproximou-se da Rússia por perceber que esse país crescerá mais do que toda a zona do Euro nos próximos dez anos. Ao mesmo tempo em que maximiza suas capacidades intrínsecas (economia forte, tecnologia civil e bélica), a Alemanha aumenta seu cacife geopolítico na Europa e frente aos EUA ao se aproximar da Rússia.
No caso dos EUA, pelo próprio tamanho e dimensão do país, a perda de influência geopolítica também tem que ser matizada. Se a crise continuar, certamente isso acontecerá. Mas eles têm tanta influência e tantas vantagens materiais acumuladas, que não perderão na mesma medida que outros Estados. Continuarão no jogo e influindo muito, ainda que num contexto menos favorável.

BLOG – A opção da China nas últimas décadas por um capitalismo de Estado apoiado no desenvolvimento econômico tem fortalecido sua economia e aumentado seu poder de influência geoestratégico, sobretudo nos países em desenvolvimento. Isso pode se refletir em uma mudança de postura dos EUA?
R.: Creio que sim. Aliás, isso já está acontecendo. A China avançou tão rápido nos últimos 10, 15 anos, que os vários governos americanos trataram de estabelecer algum tipo de parceria e relação que refletisse essa mudança. Por mais que oferecessem retóricas de defesa de direitos humanos e de defesa da democracia, governos como os de Clinton e Bush trataram de minimizar as condenações a Pequim. Aproximaram-se vigorosamente dos chineses em busca de mercados e por causa do potencial de mão de obra barata acumulado. O resultado foi uma parceria econômica que fortaleceu os dois países, mas que aumentou fortemente a capacidade norte-americana de produção e geração de tecnologia, e que foi imitada aos trancos e barrancos por outros países (quem vai ao mercado Carrefour, no Brasil, vê produtos da Bosch, alemã, fabricados na China).
Ocorre que os chineses não dormiram no ponto. O Estado chinês prosseguiu num projeto de longo prazo de influir cada vez mais na política mundial, e que tem raízes na época da Revolução de Mao Tse Tung, e, depois, na abertura econômica de Deng Xiao Ping. Eles não se limitam a fabricar produtos com desenho americano, europeu ou japonês. Eles também aprendem, e barateiam tanto o custo da coisa que se tornam capazes de fabricar suas versões, com marcas próprias, de qualquer produto gerado pelas economias mais avançadas.
Isso acontece com computadores (Lenovo, comprada da IBM), tablets (a Foxcom inova tecnologicamente para fabricar os aparelhos da Apple), aviões (os chineses estão emulando os produtos da Embraer com transferência de tecnologia da mesma), etc. Mas isso também acontece na produção de tecnologia bélica. Os aviões de combate chinês, feitos a partir da melhora da tecnologia russa, já se encontram em pé de igualdade com a maioria dos modelos franceses e americanos. Já constroem porta-aviões e submarinos nucleares com tecnologias “adquiridas” (compradas, cedidas ou “copiadas” pura e simplesmente) dos países ocidentais. E, algo que não está passando despercebido nos planejadores nos EUA: a China consegue derrubar o custo de sua tecnologia bélica pelas mesmas razões que derrubou o custo de carros, computadores, máquinas fotográficas e tablets...
Então, nos últimos dez anos, ao mesmo tempo em que se beneficiaram com a parceria com a China, os governos estadunidenses também começaram a despertar para o que consideram como uma rivalidade geoestratégica com Pequim. Os vários documentos de política externa e de defesa que tem sido emitidos nos EUA cada vez mais fazem menção a um “engajamento” positivo e seletivo com a China. Na verdade, observam com crescente desconforto como os chineses aumentam sua influência na África, Ásia e América Latina; e veem com crescente preocupação o aumento da capacidade militar chinesa na construção de uma frota naval oceânica, de uma capacidade para a “guerra espacial” (mísseis anti-satélite) e de uma cada vez mais sofisticada e agressiva capacidade para a guerra cibernética.
Se tentarão emular algumas das condições chinesas, e em especial a forte presença do Estado, é algo que permanece em aberto. Nos EUA, o estado não é ausente, mas a resistência a participação do governo na vida econômica é algo fortemente entranhado na cultura do país. Do cidadão comum, apoiador do Tea Party ou defensor dos direitos das minorias, a idéia de que o governo tem que ser limitado em sua capacidade de intervir nos direitos individuais é algo consolidado. O que pode acontecer, e isso é apenas uma suposição, é um aumento do papel do Estado para manter o “front” econômico estabilizado (isso já aconteceu por conta da crise de 2008), direcionar recursos para o jogo da política externa e, de alguma maneira, garantir direitos sociais mínimos no melhor molde social-democrata. Mas esse aumento do papel do Estado não acontecerá na mesma maneira que na Europa, e menos ainda se compararmos com o caso chinês; e haverá sempre uma queda de braço muito forte com setores importantes da sociedade e da economia estadunidense que se opõe a essa atuação estatal, e que é o que estamos presenciando na discussão sobre o orçamento federal entre os republicanos e o governo Obama.


Blog –  Pensando no sucesso do modelo Chinês e no avanço do Brasil, acompanhado de outros países sul americanos que reformaram suas economias, recuperando a capacidade de investimento do Estado e sua regulação sobre a economia. Podemos pensar que no futuro, a própria natureza competitiva dos Estados nacionais pode obrigar os países do centro a modificarem seus sistemas econômicos para não ficarem para trás?
R.: Penso que sim. Seria algo muito interessante de ser visto, e já começamos a perceber uma cobrança nesse sentido. Por exemplo, alguns jornalistas econômicos brasileiros mais lúcidos sugeriram que nós fizemos a lição de casas a duras penas, tanto no governo FHC como no governo Lula. De uma lei de responsabilidade fiscal à planos de distribuição de renda, o papel do Estado brasileiro foi no sentido de adaptar a economia e a sociedade para o jogo econômico neoliberal (uma aceitação forte no governo FHC e uma “adaptação crítica e selecionada” no governo Lula). Se o Brasil fez isso, então aqueles que obrigaram nosso país a seguir regras econômicas tidas como universais e “científicas”, os EUA, o Japão e as economias fortes da União Européia, deveriam aplicar dentro de casa o que impuseram ao resto do mundo.
Outro exemplo apareceu em vários jornais argentinos por conta da crise grega. Vários comentaristas têm sugerido que a melhor saída para a Grécia é adotar o modelo de Default argentino. Afinal de contas, Buenos Aires impôs uma derrota política a grandes fundos internacionais obrigando seus administradores a aceitar um desconto forte no pagamento dos títulos da dívida argentina, e o país conseguiu dar a volta por cima da crise de 2001. Ou seja: um modelo de um país em desenvolvimento deveria ser imitado por um país do mundo desenvolvido (a Grécia) e aceito pelos seus pares mais desenvolvidos ainda (Alemanha, França...).
Agora, penso que devemos ter em mente que esse tipo de modificação levará em consideração alguns fatores importantes para as sociedades domésticas dos países desenvolvidos. No caso norte-americano, a adoção de uma maior participação do Estado na economia poderia fornecer uma malha de proteção social a idosos, minorias, imigrantes e americanos mais pobres. Como disse acima, uma atualização estadunidense das políticas clássicas da social-democracia alemã, sueca, francesa.
Já no caso europeu, o efeito poderia ser oposto, e já podemos ver alguns indícios disso nas discussões e manifestações da Grécia, Portugal e Espanha. O Estado entraria forte para corrigir o desemprego e ativar a economia, mas ao custo de enfraquecer justamente as políticas da social-democracia. Direitos seriam abatidos e o pleno emprego (real ou ficcional) poderia ser atingido à custa de uma degradação dos direitos trabalhistas e de um achatamento do salário. Para que os europeus conseguissem competir com os chineses e mesmo com os norte-americanos, e especialmente se levarmos em consideração algumas vozes políticas ultra-liberais e de direita, conquistas históricas dos trabalhadores e dos movimentos sociais do Velho Mundo estariam ameaçadas.


Blog – Caso os EUA, na próxima década, venha a perder sua liderança econômica e sua capacidade hegemônica de orientar a geopolítica global, você acredita que o país pode fazer valer a sua superioridade militar para manter também a superioridade econômica?
R.: Essa é uma questão complexa. A segunda hegemonia histórica do capitalismo, a Inglaterra, não conseguiu valer a sua superioridade naval para manter-se no topo quando começou a perder posições no âmbito econômico. Foi ultrapassada pelos EUA e pela Alemanha na produção industrial já antes de 1914, e desceu ladeira abaixo após 1918. Ocorre que na época a diferença militar e geopolítica entre os grandes países não era tão gritante como o que acontece hoje.
Mas, voltando a essa pergunta: não sabemos se os EUA perderão sua liderança econômica, essa é que é a verdade. Normalmente, as crises do contexto histórico no qual vivemos terminam toldando as nossas tentativas de pensar o futuro. E insisto que o futuro só pode ser analisado na base da tentativa...
Vejamos um exemplo local disso: qualquer brasileiro da minha geração que viu os problemas econômicos, sociais e políticos do país 1m 1988 e 1999 não imaginaria um cenário como o atual! Distribuição de renda, ascensão de uma “nova” classe média e reconhecimento nos fóruns internacionais de que o Brasil é uma potência em ascensão com peso real nas grandes questões mundiais, como a economia, a política, o meio-ambiente, a energia e, em algum momento, nas questões de segurança.
Outro exemplo: em 1988, pensávamos no “declínio inevitável” dos EUA, e que o Japão ocuparia o lugar do país como locomotiva econômica mundial. Na Era Clinton, o Japão derrapou, e os Estados Unidos cresceram um Brasil por ano (em termos de PIB), durante o segundo mandato desse presidente.
Hoje, nós estamos observando a “draga” (perdoem-me as expressões pouco acadêmicas que vou usando nessa entrevista aqui no Blog, mas de repente imagino que estou na sala de aula...) americana: crise financeira, embate entre o Congresso de maioria republicana e o presidente Obama, atoleiro no Afeganistão, e olhamos para a China e achamos que ela superará em 10, 20 anos, inevitavelmente os EUA.
Ocorre que a China tem as suas limitações naturais, que não aparecem hoje, mas que pesarão no futuro de uma maneira potencialmente mais forte do que o que acontece com os EUA. Há uma bomba demográfica reversa que foi armada no país desde a Revolução Comunista: a política de um filho por casal já leva os demógrafos e economistas a temer pela massa de aposentados que o país terá nos próximos anos. Quem vai sustentar essas centenas de milhões de ex-trabalhadores? A China também tem problemas ambientais que só se agravaram com o desenvolvimento do país, e o Estado fez vista grossa para isso. Quem volta de Xangai diz que a cidade se destaca não só pela ultraverticalização, mas também por uma camada de poluentes (um “fog) que provoca constantes problemas respiratórios nos seus habitantes. E, finalmente, a China é pobre em recursos naturais, e a base de terras aráveis do país é muito pequena. Faltam água e capacidade de produção de alimentos, o que leva o país a depender fortemente da produção de países como o Brasil (se alguém tiver curiosidade, experimente tentar localizar um mapa demográfico chinês na Internet, e que mostre como a população está desigualmente distribuída no vasto território do país).
Em algum momento a China vai parar de crescer a 9, 10% ao ano. Isso pode acontecer de forma bem sucedida, com políticas públicas que não sufoquem o mercado e que, ao mesmo tempo, impeçam corporações e interesses capitalistas de predarem o Estado e a sociedade, mas também pode ocorrer uma “capotagem” brava, lançando ondas de crise para os quatro cantos do mundo.
Mesmo com essas considerações, creio que é salutar que estudiosos, analistas governamentais e todos os interessados pensem na possibilidade da perda de liderança dos EUA. Se a superioridade econômica for perdida, ela não acontecerá da noite para o dia. Para que a superioridade bélica dos EUA possa ser usada para manter os interesses do país no cenário mundial, algumas condições devem estar presentes.
Primeiro, essa superioridade militar, nos próximos 10 ou 20 anos, deve permanecer incontestável do ponto de vista da quantidade e da qualidade. Mais mísseis, mas também dotados de maior precisão e poder explosivo. Se chineses, indianos, russos e europeus diminuírem a distância qualitativo-quantitativa, essa superioridade deixa de ser incontestável e, aí, o incentivo para usar o poder bélico para manter os interesses geopolíticos diminui fortemente. Hoje, a superioridade decisiva dos EUA é a naval. Todos os oceanos do mundo são controlados pela marinha americana, e normalmente isso é esquecido em qualquer análise que se faça sobre o país. Ocorre que a globalização econômica, com produtos que ficam cada vez mais baratos, só pode continuar se os mares estiverem abertos ao comércio internacional. Então, recomendo fortemente que se observe como e se haverá uma superioridade de Washington nesse campo nas próximas décadas.
Segundo, a perda de liderança econômica não pode implicar em cortes muito profundos na manutenção da máquina de guerra estadunidense. Os cortes são aceitos em momentos de crise, tanto por republicanos como por democratas. Mas, se a crise diminuir os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento, Treinamento e manutenção das forças americanas ao redor do mundo, a possibilidade de recorrer à força para manter a superioridade americana cai muito.
E terceiro: a utilização do poder militar americano para salvaguardar os interesses globais do país certamente continuará acontecendo, e de maneira dramática. Vemos isso hoje no Afeganistão e Iraque, e com os resultados que observamos... Acredito que pode haver a tentativa de utilização da capacidade bélica para manter certos interesses econômicos do país, mas “apenas” em setores muito específicos. Por exemplo: manter o fluxo de petróleo (intervenções militares em certos países e controle naval das grandes rotas), manter o fluxo informacional econômico (pleno domínio do ciberespaço, com a utilização dos ataques cibernéticos contra governos e grupos adversários), pressionar certos países recalcitrantes (Irã, Venezuela, Coréia do Norte).
Finalmente: tudo dependerá da evolução do cenário internacional e do cenário doméstico estadunidense. Vários setores influentes da política americana já propunham, nos anos 90, a utilização do poder bélico para salvaguardar todos os interesses do país, a começar pelo econômico. Membros importantes desses setores assumiram o comando com o governo Bush (caso de Paul Wolfowitz), e defenderam publicamente o fortalecimento e emprego do poder militar norte-americano, embalado pela retórica da defesa da liberdade, da democracia, do livre mecardo...
Isso pode acontecer de maneira mais dramática no futuro, mas creio que no final o país pode adotar uma posição mais “pé-no-chão”: ao invés de manter uma máquina de guerra custosa, pronta para intervir a qualquer momento, os americanos podem se tornar os “equilibradores” naturais das várias regiões do globo, algo parecido com o que a Inglaterra fez no século XIX e XX. Manteriam sempre uma capacidade de entrar e resolver a questão, mas escolhendo algum lado em disputa em vários continentes. Assim, se o Irã se estranhar com a Arábia Saudita e a Turquia, os EUA não procurariam intervir diretamente, mas escolheriam um lado e atuariam de modo a fortalecê-lo. Só iriam realizar um ataque ou intervenção bélica se o lado escolhido pudesse ser derrotado num eventual confronto.



Blog – Como você vê o avanço da extrema direita na Europa? E nos EUA, os grupos políticos conservadores podem chegar à Casa Branca? 
R.: A extrema direita sofisticou-se muito nos últimos dez anos. Fiquei impressionado algumas análises que li por conta do ataque terrorista na Noruega. Ao mesmo tempo em que esses grupos se dizem anti-islâmicos, eles recusam o legado nazista! Distanciam-se, seja por opção de crença, seja por tática política, da mensagem anti-semita, de superioridade biológica da raça ariana sobre todo o resto, e constroem um discurso em defesa dos valores europeus, da cultura europeia, em oposição ao que veem como uma invasão aniquiladora da “cultura” asiática ou da “cultura” africana.
São críticos de Marx e do multiculturalismo, mas são capazes de apoiar o estado de bem estar social. Anders Breivik, o sujeito que fez os atentados terroristas na Noruega, é a ponta do iceberg desse tipo de extrema direita. É só observarmos o que apareceu no manifesto dele. O fato é que essa extrema direita pode se tornar mais forte nos próximos anos, conforme a crise econômica se aprofunde. Há relatos de que apoiadores desses grupos já fazem manifestações reunindo milhares de apoiadores em Londres...
Já estão ganhando eleições em países importantes, Itália, França (o presidente Sarzoky tem adotados medidas como a de expulsão de ciganos como forma de impedir a perda de votos de seus eleitores para essa extrema direita), Holanda e Suécia, entre outros. O que me conforta, particularmente, é que focos de resistência institucional e de resistência social a esses grupos também começam a surgir, o que pode equilibrar o jogo no sentido da preservação de uma visão de mundo mais democrática e inclusiva por parte dos europeus.

Nos EUA, a direita já avançou e conquistou posições importantes, com reflexos para todo o mundo. Já estavam em ação apoiando o governo Reagan, refluíram no governo de Bush sênior (por incrível que pareça, esse presidente não era muito próximo da extrema direita), se rearticularam contra o governo do presidente Clinton e voltam com tudo apoiando Bush Jr. (o voto dessa extrema direita, religiosa e muitas vezes xenófoba, constitui um bloco que pode desequilibrar o jogo contra os democratas).
O resultado é, por exemplo, um apoio constante ao Estado de Israel no Oriente Médio (embora, por razões geopolíticas, isso pode estar mudando), um reforço da retórica nacionalista e uma militarização da visão norte-americana nas relações exteriores.
Hoje, dia 30 de julho de 2007, temos uma amostra do crescimento dessa direita na queda de braço em torno do déficit dos EUA. Os republicanos, fortalecidos pela ascensão do Tea Party, tentam forçar um plano que impede a criação de impostos para equilibrar o orçamento federal, ao mesmo tempo em que pretendem forçar uma nova discussão em 2012, ano das eleições.
O problema é que a solução desse impasse está sendo muito complicada. A centralidade hegemônica estadunidense é tão grande que um problema doméstico ameaça desequilibrar as relações econômicas internacionais!
A ascensão da direita dos Estados Unidos foi tão forte que o economista Paul Krugman, em artigo na Folha de São Paulo de hoje, 30.07, critica o governo Obama por ter evitado o confronto com os republicanos ao longo desses anos (http://goo.gl/f1q3R). Ao ter adotado uma política conciliadora, o presidente foi perdendo espaço e capacidade de manobra, enquanto essa direita só maximizou sua capacidade de bloquear o governo em programas importantes, como a da assistência médica.
 A conta dessa política conciliatória está prestes a ser cobrada, com data limite no dia 02 de agosto. Qualquer que seja o acordo ficou claro que a direita americana pode bloquear qualquer possibilidade de reforma por dentro do governo americano, desgastando interna e externamente o presidente constitucionalmente eleito. A radicalização e o sectarismo serão o resultado mais provável daqui até 2012, com reflexos que deixarão o resto do mundo assustado com o que se passa dentro dos Estados Unidos.