segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O futuro da hegemonia estadunidense. Entrevista com o Professor Flávio Rocha de Oliveira



Entrevistei o Professor Flávio Rocha de Oliveira, Professor do Curso de Relações Internacionais da UNIFESP. Pesquisador nas áreas de Segurança Internacional e Análise de Política Externa.

A idéia é discutir de maneira informal, porém com alguma profundidade, o futuro da hegemonia dos Estados Unidos após a crise econômica de 2008 e a chegada de Obama à Casa Branca.
O Professor fala sobre o comportamento geoestratégico da maior potência global com o pano de fundo da concorrência chinesa, crise econômica mundial e avanço das forças políticas de direita e extrema direita nos países do centro.



Blog - É possível pontuar quais as principais transformações na política externa norte-americana após a posse do presidente Obama?
O Presidente Obama assumiu o governo nos EUA embalado numa retórica mudancista em relação ao seu predecessor, George Bush, que teve ampla simpatia por parte de setores progressistas nos EUA e no resto do mundo. A idéia básica é que as políticas fortemente unilateralistas dos Estados Unidos seriam substituídas por uma maior consulta com outros países, e em especial os aliados europeus, sobre questões relevantes do cenário internacional, como o combate ao terrorismo, a situação no Oriente Médio e o gerenciamento do sistema econômico mundial. Um exemplo dessa expectativa gerada foi o Prêmio Nobel da Paz que ele recebeu. Esse prêmio foi essencialmente político, e sinalizou um desejo, por parte dos europeus (ou de certos setores na Europa), de serem mais ouvidos no tratamento de problemas mundiais relevantes.
Pois bem, o problema é que a expectativa colide com a realidade. Nesse caso, a realidade foi aquela herdada de oito anos de governo republicano: duas ocupações militares problemáticas na Ásia (Iraque e Afeganistão), um aumento forte nos gastos militares, um conjunto de políticas econômicas que desregulamentaram fortemente os mercados e que criaram as condições para o déficit monstruoso dos EUA e, finalmente, uma crise econômica que abalou o mercado financeiro mundial. De um ponto de vista mais estrutural ainda, há o fato de que os Estados Unidos são a hegemonia global que possui interesses nos quatro cantos do mundo, e tem que pagar o preço de administrar essa realidade levando em consideração os interesses e as divergências de vários outros povos, Estados e grupos no sistema internacional.
A partir dessa herança, o governo Obama não possuiu muita margem de manobra. Se observarmos a evolução das coisas no setor de segurança e de relações exteriores, a retórica obamista foi, de fato, mais multilateral. Houve uma maior disposição de conversar com a Europa sobre questões espinhosas, como o caso do programa nuclear iraniano; houve uma abertura para reconhecimento da importância de potências emergentes no cenário mundial, como é o caso da Índia e, em menor escala, do Brasil. Mas a prática política norte-americana continuou presa a estrutura hegemônica historicamente criada. Por exemplo: a OTAN não se mexe sem o aval de Washington; qualquer tentativa de reconhecimento do Estado Palestino, ou de condenação ao Estado de Israel, é bloqueada na ONU por parte dos EUA. Finalmente, eles continuam agindo sem consultar seus aliados o Iraque (a agenda de retirada é deles) e no Afeganistão (o governo Obama chancelou os resultados da eleição afegã, que foram reconhecidamente roubados).
Há alguns sinais de mudança, mas que teremos que esperar mais alguns anos para ver se configuram uma questão passageira desse governo, ou se são sinais de transformação mais profunda dos próprios Estados Unidos. Um exemplo, e forte: o tratamento dispensado ao Estado de Israel. Quem acompanha a imprensa internacional, e especialmente a israelense, percebe que as relações entre os dois países não passam pelo seu melhor momento. O governo Obama tem feito o possível para passar a idéia de que não fornecerá um cheque em branco para os israelenses, ao mesmo tempo em que sinaliza que são grandes aliados dos EUA. O governo Obama não perde uma oportunidade de declarar que os israelenses tem que resolver seus problemas com os palestinos. Na última semana, o Conselho de Segurança Nacional dos EUA recebeu uma delegação israelense de ex-diplomatas e de generais reformados que são extremamente críticos da visão do premiê Netanyahu a respeito dos palestinos.
Essa delegação disse, taxativamente, que Israel deve reconhecer rapidamente o Estado Palestino, que as fronteiras israelenses não serão indefensáveis se isso acontecer. E advertiram: em menos de 30 anos Israel não continuará sendo um estado democrático e judeu se continuar ocupando os territórios palestinos por uma razão muito simples que é o crescimento demográfico. A taxa de natalidade palestina e dos árabes israelenses é superior a dos cidadãos judeus, e nesse prazo de tempo isso vai gerar uma distorção parecida com o que aconteceu na África do Sul do Apartheid: uma maioria dominada por uma minoria repressiva.





Blog – A crise econômica iniciada em 2008, se continuar agravando pode refletir em uma perda de poder geopolítico nos países do centro.
R.: Sim, pode. Esses países podem perder capacidade de gerenciar a economia mundial. Podem perder credibilidade frente a outros povos (devemos lembrar que a eleição da francesa Cristiane Lagarde à chefia do FMI foi contestada com a candidatura de um mexicano), e, caso mais complicado, em relação aos próprios cidadãos. A crise de confiança principal emerge dos cidadãos americanos, franceses, italianos, etc.
Agora, temos que matizar. A perda de poder geopolítico não significa que os países do centro perdem em bloco. Alguns tem mais margem de manobra do que outros e conseguirão minimizar as perdas e, mesmo, aumentar sua esfera de influência em direção a outras realidades geopolíticas. Um caso é o da Alemanha. Ela tem sido afetada pelas crises econômicas dos EUA e da Grécia/Europa. Como maior economia europeia, o que ela tem feito? Aproximou-se da Rússia por perceber que esse país crescerá mais do que toda a zona do Euro nos próximos dez anos. Ao mesmo tempo em que maximiza suas capacidades intrínsecas (economia forte, tecnologia civil e bélica), a Alemanha aumenta seu cacife geopolítico na Europa e frente aos EUA ao se aproximar da Rússia.
No caso dos EUA, pelo próprio tamanho e dimensão do país, a perda de influência geopolítica também tem que ser matizada. Se a crise continuar, certamente isso acontecerá. Mas eles têm tanta influência e tantas vantagens materiais acumuladas, que não perderão na mesma medida que outros Estados. Continuarão no jogo e influindo muito, ainda que num contexto menos favorável.

BLOG – A opção da China nas últimas décadas por um capitalismo de Estado apoiado no desenvolvimento econômico tem fortalecido sua economia e aumentado seu poder de influência geoestratégico, sobretudo nos países em desenvolvimento. Isso pode se refletir em uma mudança de postura dos EUA?
R.: Creio que sim. Aliás, isso já está acontecendo. A China avançou tão rápido nos últimos 10, 15 anos, que os vários governos americanos trataram de estabelecer algum tipo de parceria e relação que refletisse essa mudança. Por mais que oferecessem retóricas de defesa de direitos humanos e de defesa da democracia, governos como os de Clinton e Bush trataram de minimizar as condenações a Pequim. Aproximaram-se vigorosamente dos chineses em busca de mercados e por causa do potencial de mão de obra barata acumulado. O resultado foi uma parceria econômica que fortaleceu os dois países, mas que aumentou fortemente a capacidade norte-americana de produção e geração de tecnologia, e que foi imitada aos trancos e barrancos por outros países (quem vai ao mercado Carrefour, no Brasil, vê produtos da Bosch, alemã, fabricados na China).
Ocorre que os chineses não dormiram no ponto. O Estado chinês prosseguiu num projeto de longo prazo de influir cada vez mais na política mundial, e que tem raízes na época da Revolução de Mao Tse Tung, e, depois, na abertura econômica de Deng Xiao Ping. Eles não se limitam a fabricar produtos com desenho americano, europeu ou japonês. Eles também aprendem, e barateiam tanto o custo da coisa que se tornam capazes de fabricar suas versões, com marcas próprias, de qualquer produto gerado pelas economias mais avançadas.
Isso acontece com computadores (Lenovo, comprada da IBM), tablets (a Foxcom inova tecnologicamente para fabricar os aparelhos da Apple), aviões (os chineses estão emulando os produtos da Embraer com transferência de tecnologia da mesma), etc. Mas isso também acontece na produção de tecnologia bélica. Os aviões de combate chinês, feitos a partir da melhora da tecnologia russa, já se encontram em pé de igualdade com a maioria dos modelos franceses e americanos. Já constroem porta-aviões e submarinos nucleares com tecnologias “adquiridas” (compradas, cedidas ou “copiadas” pura e simplesmente) dos países ocidentais. E, algo que não está passando despercebido nos planejadores nos EUA: a China consegue derrubar o custo de sua tecnologia bélica pelas mesmas razões que derrubou o custo de carros, computadores, máquinas fotográficas e tablets...
Então, nos últimos dez anos, ao mesmo tempo em que se beneficiaram com a parceria com a China, os governos estadunidenses também começaram a despertar para o que consideram como uma rivalidade geoestratégica com Pequim. Os vários documentos de política externa e de defesa que tem sido emitidos nos EUA cada vez mais fazem menção a um “engajamento” positivo e seletivo com a China. Na verdade, observam com crescente desconforto como os chineses aumentam sua influência na África, Ásia e América Latina; e veem com crescente preocupação o aumento da capacidade militar chinesa na construção de uma frota naval oceânica, de uma capacidade para a “guerra espacial” (mísseis anti-satélite) e de uma cada vez mais sofisticada e agressiva capacidade para a guerra cibernética.
Se tentarão emular algumas das condições chinesas, e em especial a forte presença do Estado, é algo que permanece em aberto. Nos EUA, o estado não é ausente, mas a resistência a participação do governo na vida econômica é algo fortemente entranhado na cultura do país. Do cidadão comum, apoiador do Tea Party ou defensor dos direitos das minorias, a idéia de que o governo tem que ser limitado em sua capacidade de intervir nos direitos individuais é algo consolidado. O que pode acontecer, e isso é apenas uma suposição, é um aumento do papel do Estado para manter o “front” econômico estabilizado (isso já aconteceu por conta da crise de 2008), direcionar recursos para o jogo da política externa e, de alguma maneira, garantir direitos sociais mínimos no melhor molde social-democrata. Mas esse aumento do papel do Estado não acontecerá na mesma maneira que na Europa, e menos ainda se compararmos com o caso chinês; e haverá sempre uma queda de braço muito forte com setores importantes da sociedade e da economia estadunidense que se opõe a essa atuação estatal, e que é o que estamos presenciando na discussão sobre o orçamento federal entre os republicanos e o governo Obama.


Blog –  Pensando no sucesso do modelo Chinês e no avanço do Brasil, acompanhado de outros países sul americanos que reformaram suas economias, recuperando a capacidade de investimento do Estado e sua regulação sobre a economia. Podemos pensar que no futuro, a própria natureza competitiva dos Estados nacionais pode obrigar os países do centro a modificarem seus sistemas econômicos para não ficarem para trás?
R.: Penso que sim. Seria algo muito interessante de ser visto, e já começamos a perceber uma cobrança nesse sentido. Por exemplo, alguns jornalistas econômicos brasileiros mais lúcidos sugeriram que nós fizemos a lição de casas a duras penas, tanto no governo FHC como no governo Lula. De uma lei de responsabilidade fiscal à planos de distribuição de renda, o papel do Estado brasileiro foi no sentido de adaptar a economia e a sociedade para o jogo econômico neoliberal (uma aceitação forte no governo FHC e uma “adaptação crítica e selecionada” no governo Lula). Se o Brasil fez isso, então aqueles que obrigaram nosso país a seguir regras econômicas tidas como universais e “científicas”, os EUA, o Japão e as economias fortes da União Européia, deveriam aplicar dentro de casa o que impuseram ao resto do mundo.
Outro exemplo apareceu em vários jornais argentinos por conta da crise grega. Vários comentaristas têm sugerido que a melhor saída para a Grécia é adotar o modelo de Default argentino. Afinal de contas, Buenos Aires impôs uma derrota política a grandes fundos internacionais obrigando seus administradores a aceitar um desconto forte no pagamento dos títulos da dívida argentina, e o país conseguiu dar a volta por cima da crise de 2001. Ou seja: um modelo de um país em desenvolvimento deveria ser imitado por um país do mundo desenvolvido (a Grécia) e aceito pelos seus pares mais desenvolvidos ainda (Alemanha, França...).
Agora, penso que devemos ter em mente que esse tipo de modificação levará em consideração alguns fatores importantes para as sociedades domésticas dos países desenvolvidos. No caso norte-americano, a adoção de uma maior participação do Estado na economia poderia fornecer uma malha de proteção social a idosos, minorias, imigrantes e americanos mais pobres. Como disse acima, uma atualização estadunidense das políticas clássicas da social-democracia alemã, sueca, francesa.
Já no caso europeu, o efeito poderia ser oposto, e já podemos ver alguns indícios disso nas discussões e manifestações da Grécia, Portugal e Espanha. O Estado entraria forte para corrigir o desemprego e ativar a economia, mas ao custo de enfraquecer justamente as políticas da social-democracia. Direitos seriam abatidos e o pleno emprego (real ou ficcional) poderia ser atingido à custa de uma degradação dos direitos trabalhistas e de um achatamento do salário. Para que os europeus conseguissem competir com os chineses e mesmo com os norte-americanos, e especialmente se levarmos em consideração algumas vozes políticas ultra-liberais e de direita, conquistas históricas dos trabalhadores e dos movimentos sociais do Velho Mundo estariam ameaçadas.


Blog – Caso os EUA, na próxima década, venha a perder sua liderança econômica e sua capacidade hegemônica de orientar a geopolítica global, você acredita que o país pode fazer valer a sua superioridade militar para manter também a superioridade econômica?
R.: Essa é uma questão complexa. A segunda hegemonia histórica do capitalismo, a Inglaterra, não conseguiu valer a sua superioridade naval para manter-se no topo quando começou a perder posições no âmbito econômico. Foi ultrapassada pelos EUA e pela Alemanha na produção industrial já antes de 1914, e desceu ladeira abaixo após 1918. Ocorre que na época a diferença militar e geopolítica entre os grandes países não era tão gritante como o que acontece hoje.
Mas, voltando a essa pergunta: não sabemos se os EUA perderão sua liderança econômica, essa é que é a verdade. Normalmente, as crises do contexto histórico no qual vivemos terminam toldando as nossas tentativas de pensar o futuro. E insisto que o futuro só pode ser analisado na base da tentativa...
Vejamos um exemplo local disso: qualquer brasileiro da minha geração que viu os problemas econômicos, sociais e políticos do país 1m 1988 e 1999 não imaginaria um cenário como o atual! Distribuição de renda, ascensão de uma “nova” classe média e reconhecimento nos fóruns internacionais de que o Brasil é uma potência em ascensão com peso real nas grandes questões mundiais, como a economia, a política, o meio-ambiente, a energia e, em algum momento, nas questões de segurança.
Outro exemplo: em 1988, pensávamos no “declínio inevitável” dos EUA, e que o Japão ocuparia o lugar do país como locomotiva econômica mundial. Na Era Clinton, o Japão derrapou, e os Estados Unidos cresceram um Brasil por ano (em termos de PIB), durante o segundo mandato desse presidente.
Hoje, nós estamos observando a “draga” (perdoem-me as expressões pouco acadêmicas que vou usando nessa entrevista aqui no Blog, mas de repente imagino que estou na sala de aula...) americana: crise financeira, embate entre o Congresso de maioria republicana e o presidente Obama, atoleiro no Afeganistão, e olhamos para a China e achamos que ela superará em 10, 20 anos, inevitavelmente os EUA.
Ocorre que a China tem as suas limitações naturais, que não aparecem hoje, mas que pesarão no futuro de uma maneira potencialmente mais forte do que o que acontece com os EUA. Há uma bomba demográfica reversa que foi armada no país desde a Revolução Comunista: a política de um filho por casal já leva os demógrafos e economistas a temer pela massa de aposentados que o país terá nos próximos anos. Quem vai sustentar essas centenas de milhões de ex-trabalhadores? A China também tem problemas ambientais que só se agravaram com o desenvolvimento do país, e o Estado fez vista grossa para isso. Quem volta de Xangai diz que a cidade se destaca não só pela ultraverticalização, mas também por uma camada de poluentes (um “fog) que provoca constantes problemas respiratórios nos seus habitantes. E, finalmente, a China é pobre em recursos naturais, e a base de terras aráveis do país é muito pequena. Faltam água e capacidade de produção de alimentos, o que leva o país a depender fortemente da produção de países como o Brasil (se alguém tiver curiosidade, experimente tentar localizar um mapa demográfico chinês na Internet, e que mostre como a população está desigualmente distribuída no vasto território do país).
Em algum momento a China vai parar de crescer a 9, 10% ao ano. Isso pode acontecer de forma bem sucedida, com políticas públicas que não sufoquem o mercado e que, ao mesmo tempo, impeçam corporações e interesses capitalistas de predarem o Estado e a sociedade, mas também pode ocorrer uma “capotagem” brava, lançando ondas de crise para os quatro cantos do mundo.
Mesmo com essas considerações, creio que é salutar que estudiosos, analistas governamentais e todos os interessados pensem na possibilidade da perda de liderança dos EUA. Se a superioridade econômica for perdida, ela não acontecerá da noite para o dia. Para que a superioridade bélica dos EUA possa ser usada para manter os interesses do país no cenário mundial, algumas condições devem estar presentes.
Primeiro, essa superioridade militar, nos próximos 10 ou 20 anos, deve permanecer incontestável do ponto de vista da quantidade e da qualidade. Mais mísseis, mas também dotados de maior precisão e poder explosivo. Se chineses, indianos, russos e europeus diminuírem a distância qualitativo-quantitativa, essa superioridade deixa de ser incontestável e, aí, o incentivo para usar o poder bélico para manter os interesses geopolíticos diminui fortemente. Hoje, a superioridade decisiva dos EUA é a naval. Todos os oceanos do mundo são controlados pela marinha americana, e normalmente isso é esquecido em qualquer análise que se faça sobre o país. Ocorre que a globalização econômica, com produtos que ficam cada vez mais baratos, só pode continuar se os mares estiverem abertos ao comércio internacional. Então, recomendo fortemente que se observe como e se haverá uma superioridade de Washington nesse campo nas próximas décadas.
Segundo, a perda de liderança econômica não pode implicar em cortes muito profundos na manutenção da máquina de guerra estadunidense. Os cortes são aceitos em momentos de crise, tanto por republicanos como por democratas. Mas, se a crise diminuir os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento, Treinamento e manutenção das forças americanas ao redor do mundo, a possibilidade de recorrer à força para manter a superioridade americana cai muito.
E terceiro: a utilização do poder militar americano para salvaguardar os interesses globais do país certamente continuará acontecendo, e de maneira dramática. Vemos isso hoje no Afeganistão e Iraque, e com os resultados que observamos... Acredito que pode haver a tentativa de utilização da capacidade bélica para manter certos interesses econômicos do país, mas “apenas” em setores muito específicos. Por exemplo: manter o fluxo de petróleo (intervenções militares em certos países e controle naval das grandes rotas), manter o fluxo informacional econômico (pleno domínio do ciberespaço, com a utilização dos ataques cibernéticos contra governos e grupos adversários), pressionar certos países recalcitrantes (Irã, Venezuela, Coréia do Norte).
Finalmente: tudo dependerá da evolução do cenário internacional e do cenário doméstico estadunidense. Vários setores influentes da política americana já propunham, nos anos 90, a utilização do poder bélico para salvaguardar todos os interesses do país, a começar pelo econômico. Membros importantes desses setores assumiram o comando com o governo Bush (caso de Paul Wolfowitz), e defenderam publicamente o fortalecimento e emprego do poder militar norte-americano, embalado pela retórica da defesa da liberdade, da democracia, do livre mecardo...
Isso pode acontecer de maneira mais dramática no futuro, mas creio que no final o país pode adotar uma posição mais “pé-no-chão”: ao invés de manter uma máquina de guerra custosa, pronta para intervir a qualquer momento, os americanos podem se tornar os “equilibradores” naturais das várias regiões do globo, algo parecido com o que a Inglaterra fez no século XIX e XX. Manteriam sempre uma capacidade de entrar e resolver a questão, mas escolhendo algum lado em disputa em vários continentes. Assim, se o Irã se estranhar com a Arábia Saudita e a Turquia, os EUA não procurariam intervir diretamente, mas escolheriam um lado e atuariam de modo a fortalecê-lo. Só iriam realizar um ataque ou intervenção bélica se o lado escolhido pudesse ser derrotado num eventual confronto.



Blog – Como você vê o avanço da extrema direita na Europa? E nos EUA, os grupos políticos conservadores podem chegar à Casa Branca? 
R.: A extrema direita sofisticou-se muito nos últimos dez anos. Fiquei impressionado algumas análises que li por conta do ataque terrorista na Noruega. Ao mesmo tempo em que esses grupos se dizem anti-islâmicos, eles recusam o legado nazista! Distanciam-se, seja por opção de crença, seja por tática política, da mensagem anti-semita, de superioridade biológica da raça ariana sobre todo o resto, e constroem um discurso em defesa dos valores europeus, da cultura europeia, em oposição ao que veem como uma invasão aniquiladora da “cultura” asiática ou da “cultura” africana.
São críticos de Marx e do multiculturalismo, mas são capazes de apoiar o estado de bem estar social. Anders Breivik, o sujeito que fez os atentados terroristas na Noruega, é a ponta do iceberg desse tipo de extrema direita. É só observarmos o que apareceu no manifesto dele. O fato é que essa extrema direita pode se tornar mais forte nos próximos anos, conforme a crise econômica se aprofunde. Há relatos de que apoiadores desses grupos já fazem manifestações reunindo milhares de apoiadores em Londres...
Já estão ganhando eleições em países importantes, Itália, França (o presidente Sarzoky tem adotados medidas como a de expulsão de ciganos como forma de impedir a perda de votos de seus eleitores para essa extrema direita), Holanda e Suécia, entre outros. O que me conforta, particularmente, é que focos de resistência institucional e de resistência social a esses grupos também começam a surgir, o que pode equilibrar o jogo no sentido da preservação de uma visão de mundo mais democrática e inclusiva por parte dos europeus.

Nos EUA, a direita já avançou e conquistou posições importantes, com reflexos para todo o mundo. Já estavam em ação apoiando o governo Reagan, refluíram no governo de Bush sênior (por incrível que pareça, esse presidente não era muito próximo da extrema direita), se rearticularam contra o governo do presidente Clinton e voltam com tudo apoiando Bush Jr. (o voto dessa extrema direita, religiosa e muitas vezes xenófoba, constitui um bloco que pode desequilibrar o jogo contra os democratas).
O resultado é, por exemplo, um apoio constante ao Estado de Israel no Oriente Médio (embora, por razões geopolíticas, isso pode estar mudando), um reforço da retórica nacionalista e uma militarização da visão norte-americana nas relações exteriores.
Hoje, dia 30 de julho de 2007, temos uma amostra do crescimento dessa direita na queda de braço em torno do déficit dos EUA. Os republicanos, fortalecidos pela ascensão do Tea Party, tentam forçar um plano que impede a criação de impostos para equilibrar o orçamento federal, ao mesmo tempo em que pretendem forçar uma nova discussão em 2012, ano das eleições.
O problema é que a solução desse impasse está sendo muito complicada. A centralidade hegemônica estadunidense é tão grande que um problema doméstico ameaça desequilibrar as relações econômicas internacionais!
A ascensão da direita dos Estados Unidos foi tão forte que o economista Paul Krugman, em artigo na Folha de São Paulo de hoje, 30.07, critica o governo Obama por ter evitado o confronto com os republicanos ao longo desses anos (http://goo.gl/f1q3R). Ao ter adotado uma política conciliadora, o presidente foi perdendo espaço e capacidade de manobra, enquanto essa direita só maximizou sua capacidade de bloquear o governo em programas importantes, como a da assistência médica.
 A conta dessa política conciliatória está prestes a ser cobrada, com data limite no dia 02 de agosto. Qualquer que seja o acordo ficou claro que a direita americana pode bloquear qualquer possibilidade de reforma por dentro do governo americano, desgastando interna e externamente o presidente constitucionalmente eleito. A radicalização e o sectarismo serão o resultado mais provável daqui até 2012, com reflexos que deixarão o resto do mundo assustado com o que se passa dentro dos Estados Unidos.


Um comentário:

  1. Excelente texto, serviu como uma aula de geopolitica para um curioso. Obrigado e parabéns professor

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