quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A felicidade é um radinho de pilha



Na Praça 14 Bis, os dois homens discutiam com seriedade a aquisição de um pequeno radio de pilha.
Pensavam nos pormenores de realizar uma compra tão importante e ambiciosa.
Contavam o dinheiro e conferiam a contribuição dos amigos que haviam participado da vaquinha. Percebi que o radio seria compartilhado por mais gente. Seria um regalo interessante para oferecer um mínimo de alívio naquela noite quente em meio aos escombros.
Conseguiram um bom desconto. O dono da banca aceitou reduzir de 25 para 20 o preço do radinho.
Eles analisavam com calma o radio. Liam a embalagem. Pareciam estar em dúvida sobre o amarelo ou o azul.
O vendedor tentava apressá-los, pois notou a minha presença. Esperei calmamente. Não apressei. Precisava de um carregador para meu celular.
Os dois homens estavam sujos e aparentemente bêbados. Mesmo assim não perdiam a concentração naquele momento solene.
Ambos não esconderam a decepção ao descobrir que o radio não acompanhava pilhas. 
Pediam as pilhas como brinde. Clamavam. Emploravam.
O vendedor demonstrava impaciência e dizia ser impossível dar as pilhas de presente, pois o desconto de 5,00 no preço do radio já era o máximo que ele podia fazer.
Inutilmente, o comerciante mostrava que o radio acompanhava um carregador de tomada.
Mas como assim tomada? Vivem todos na rua. Estavam numa encruzilhada. Conseguiram juntar o dinheiro para o radio, mas não poderiam ouvir música. Voltariam todos frustrados sem a pilha.
Eu estava com as mãos ocupadas, cheias de sacolas do supermercado. Queria cozinhar ouvindo jazz. Que ironia. Então eu fiz um sinal com a testa e as sobrancelhas ao vendedor e ele entendeu que as pilhas seriam pagas.
Os dois homens negros saíram pela calçada abraçados. Felizes com o radio novo. Cambaleavam e se apoiavam mutuamente. Ambos olhando aquele radio ching ling encantados, como se tivessem acabado de sair das Casas Bahia.
Nesta noite não teve jazz aqui em casa. Não rolou.
Estava atormentado. O lance do radio havia realmente me tocado.
Percebi que ouvir música ou mesmo algum locutor falando ao seu ouvido é uma necessidade básica como todas as outras.
Uma melodia que possa preencher alguma fissura em nossa alma. Tranquilizar um espírito que não sabe onde repousa. Uma música que possa desviar os ouvidos dos ônibus que correm desesperados por cima do viaduto. Um som capaz de sedimentar a rachadura de um coração partido. Que possa atenuar o desamparo, a solidão e a carência.
Detesto escrever história de caridade.
Simplesmente porque nenhuma caridade poderia me fazer melhor ou pior do que sou. Além do mais, auto-história de caridade é um saco.
Mas eu enchi uma sacola com algumas camisas legais que estavam espalhadas nas minhas gavetas. Percebi que eles eram jovens e possivelmente gostariam delas.
Honestamente, eu queria mesmo era ver o fim da história. Encontrar os dois rapazes com seu radio novo.
Caminhei um pouco pela praça, que na verdade é um largo no Bixiga, interrompido violentamente ao meio por um viaduto feioso. 
Não foi difícil encontrar os rapazes.
Eles cozinhavam. A noite parecia relativamente farta. A música tentava sair alta no radinho.
Da maneira deles, estavam fazendo justamente aquilo que eu planejava fazer essa noite.
Entreguei a sacola com as roupas, algumas pilhas e recebi de volta quatro sorrisos.
Ao abrir a embalagem, cada um pegou apenas uma camisa.
Voltando para casa continuei olhando para eles. Percebi que eles repassavam o excedente de camisas aos vizinhos que também moravam debaixo da ponte.
Havia alguma beleza naquilo tudo. Tristeza, mas uma riqueza que muita gente não consegue ver porque é pobre de espírito.
A noite continuou sem jazz.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A São Paulo dos Grafites que Colorem as Cinzas do Concreto e da Nossa Vida!





Curioso este repentino “interesse” das classes conservadoras paulistanas pelo grafite e a arte urbana nas avenidas da cidade.

Bom saber que finalmente parecem estar preocupados com o que ocorre nas ruas da cidade, para além do fluxo de automóveis, semáforos, placas de sinalização, lugar pra estacionar e com a presença de policiais nas esquinas mais perigosas.

Tradicionalmente, os espaços públicos estiveram abandonados como uma zona de ninguém. O que ocorre entre o ponto de origem e o ponto de destino de grande parte dos paulistanos, tem sido absurdamente ignorado durante anos. Quase ninguém sequer caminha em grandes trechos urbanos, fazendo com que alguns sítios se pareçam com uma cidade fantasma.

Até mesmo aqueles "arcos" na 23 de Maio, que agora escandaliza a coxinharia geral, esteve durante décadas abandonado e sujo.

Enquanto os shoppings (esta grande invenção da humanidade) estiveram esse tempo todo abarrotados de gente, a cidade ficou largada. Isso favoreceu a criação de “cracolândias”, esconderijos e becos por onde a violência urbana se alastrou. Lojas de bairro fecharam as portas.

Até mesmo o centro da cidade ficou vazio. Os imóveis desvalorizados. Apenas nos últimos anos, com a pressão imobiliária e o trânsito caótico, o centro voltou a ser alternativa de moradia.

Essa gente agora chamada de “marginal”, foi quem salvou o centro da cidade.

Grafiteiros, skatistas, boêmios, universitários, comunidade gay, etc. Foram eles que revitalizaram e humanizaram uma importante região de São Paulo que esteve submersa no esquecimento de quem só tem olhos para os espaços privados, para as coisas privadas, para os núcleos de privilégio, ambicionando viver em alguma ilha de prosperidade, para olhar a cidade apenas através de alguma janela triste.

A reapropriação (ou apropriação) dos espaços públicos é hoje uma realidade na Cidade de São Paulo. E ela não é obra de nenhum governo, mas o impulso de uma galera livre da breguice amarelada e dos traumas de uma cidade construída por gente refugiada das guerras, retirante das secas, traumatizada com um passado de desterro e abandono. Uma gente obcecada pelo progresso pessoal a todo custo.

Não é à toa que a feiura tomou conta das paisagens. A arquitetura marcada pelos projetos individuais, ausentes de senso de coletividade, onde o único sentido das obras estava no funcional.

A São Paulo dessa nova galera que anda por aí não é mais a “cidade do progresso”, mas muito provavelmente a cidade do bem-estar social.

Os grafites embelezam e humanizam a nossa cidade. Conferem uma nova marca e um novo reconhecimento para São Paulo. Rompem a frieza cotidiana, provocam reflexão e colorem as cinzas do nosso concreto e da nossa vida.

Mas, se tem gente que não gosta, tudo bem. Criem alternativas. Participem da vida da cidade. Caminhem. Adquiram interesse por seu bairro. Convivam no parque, nas festas, nos eventos. Ao invés de reclamar para o “PSIU”, participe você também de alguma farra.

Viva mais! Ame mais! Goze mais! Deixe de lado essa histeria e essa cara de bunda elitista.


Há tanta vida lá fora…

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quanta hipocrisia...


O Brasil nunca foi tão hipócrita!
Dói a boca do estômago ouvir os brados histéricos dos moralistas de plantão.
De picareta que dá a volta até no próprio irmão, falando de honestidade.
De playboy cuzão que sempre foi protegido pelo pai falando de meritocracia.
De tiozão esperto, que acelera o carrão pelo acostamento, chamando todos os outros motoristas de trouxa, reclamando de faixa de ônibus.
De reaça pobre que está empregado, mas continua recebendo "por fora" o seguro desemprego, falando que o Brasil não presta por causa de político corrupto.
Dá ânsia de vomito perceber como todo mundo ficou super ético de repente.
Médico que tem clínica clandestina de aborto fazendo jantar beneficente por um país sem corruptos.
Racista safado reclamando que não se sente respeitado neste país com valores invertidos.
Contrabandista de medicamento que, todo nojentão, paga de elitista dizendo que o pobre não tem as coisas porque é preguiçoso.
É muito deprimente ver gente que até outro dia não tinha nem um gato pra puxar pelo rabo, cuspindo pra cima e defendendo a lógica do inimigo, ignorando o fato que logo mais será o primeiro a levar na tarraqueta.
Quanta hipocrisia.
A indignação seletiva de quem coloca nariz de palhaço pra protestar contra um crime, mas tolera obedientemente a corrupção dos velhos senhores.
A indignação temporal de quem só denuncia os crimes de dia tal ao dia tal. Igualzinho a extrato de banco.
Tá um nojo.
Todo mundo posando de eticuzinho. Vende até a mãe por causa da porra do dinheiro e agora faz discurso de miss.
Levanta a capa da revista como se todos estivessem muito interessados no futuro do Brasil.
Quanta virtude!
Quanta decência, heim?
Somos tão justos. Tão corretos.
Então por que será que escravizamos os negros por mais de três séculos? E depois depusemos o Rei e a Princesa quando estes aboliram a escravidão?
Que empurramos os miseráveis para a beira do esgoto, para os lixões e na beirada do morro?
Que lindos somos todos nós.
Quanta gente de bem!
A turma do bullying agora está corajosa demais. Contando os dias para mostrar novamente quem é que manda.
Divirtam-se! No fundo esse país foi sempre de vocês. Construíram ele inteirinho à imagem e semelhança destes senhores tão virtuosos.
Dormimos tranquilos, agora. Estamos feitos!
Deus está solto!
Dirigido por vocês, certamente o Brasil estaria em boas mãos.
Só que não.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

DECLARAÇÃO DE VOTO NAS ELEIÇÕES DO CORINTHIANS





DECLARAÇÃO DE VOTO

É de fundamental importância as escolhas históricas que o Corinthians deve fazer neste momento.

Nos últimos anos o Corinthians conquistou muito. Exorcizamos fantasmas que nos assombravam há tempos. Realizamos desejos que até outro dia eram fantasias que habitavam na imaginação de cada corinthiano.

Em verdade, queríamos muito os títulos que conquistamos e a nova casa pela qual sempre lutamos. Porém, em nenhum momento desejamos um Corinthians diferente do que ele sempre foi. Ou seja, um instrumento poderoso de identidade e representação da nossa gente. Um Corinthians que jogue o jogo como a gente joga a vida da gente!

As eleições livres no Corinthians são tão ou mais valiosas do que qualquer troféu ou edifício que nos pertença. Durante anos fomos roubados do direito de escolher o presidente do clube e seus conselheiros.

Claro que existe muito a ser melhorado na nossa estrutura política. Os instrumentos de eleição e de representação devem ser aperfeiçoados e perseguirem sempre a efetiva participação da nação corinthiana, buscando os instrumentos mais adequados para que isso ocorra.

Mas é importante reconhecer que, embora o Corinthians ainda conviva com vícios históricos na representação política de seus associados e torcedores, houve avanços significativos no processo político-eleitoral dentro do clube. O que não deve inibir a busca para maior democratização e espaços de participação nas decisões estratégicas.

É bom que se diga, a eleição não é um momento apenas para a escolha de presidente e conselheiros. Deve significar a oportunidade para a reflexão sobre os caminhos que o Corinthians deve percorrer. Decidir sobre o nosso futuro. Para onde devemos caminhar.

Já é hora de colocarmos a mão na consciência. A euforia pelas conquistas e vitórias devem por um momento ser deixada de lado. É evidente que devemos nos inspirar nas experiências bem sucedidas no futebol mundial. Mas não queremos ser o Manchester, o Barcelona, o Real Madri, nem o Bayer. Queremos continuar sendo o Coringão do nosso Coração!

Quem defende a nossa identidade de Corinthians do Povo, normalmente é tratado como um romântico ou ingênuo.

Porém, se somos o que somos, se nos tornamos este gigante, se atraímos patrocinadores, televisões e anunciantes, se podemos negociar a nossa marca e ganhar dinheiro com isso, é justamente porque somos a porta de entrada para o povão. Esta sociedade viva que cresce, que ama, que compra, que estuda, que vai chegar longe. Algo que nem publicitários, sociólogos ou filósofos sabem ao certo o que exatamente é, mas intuem ser algo muito semelhante e próximo do que é a gente corinthiana. Somos a porta de entrada para a chamada “nova classe média”. Daquela que já foi incluída, mas também daquela que ainda será incluída ao longo dos anos.

A experiência de frequentar o estádio de futebol é fundamental para a formação do corinthiano. Podemos lotar mais os jogos. Consumir mais. Com mais gente no estádio, oferecendo maior inclusão e felicidade ao nosso torcedor.

Em outras palavras, preservar nossas raízes populares é uma maneira eficiente para ganhar mais dinheiro, não menos. É possível arrecadar mais com mais gente e preservar o nosso maior patrimônio para o futuro, ou seja, o torcedor corinthiano. Continuar sendo o Time do Povo deve ser uma decisão estratégica. Seja por responsabilidade histórica, seja também pelo crescimento econômico.

O Corinthians é um patrimônio social, político e cultural do povo brasileiro! Devemos assumir a importância que temos para que o nosso futebol não seja mais um instrumento de exclusão e por isso, não à toa, continue definhando pelos campos e, a cada dia, ocupando menor importância para as novas gerações.

Uma chapa para eleição no Corinthians não é composta apenas pelo candidato ao cargo majoritário. Configura-se como um conjunto de seres humanos com opiniões, preocupações e aspirações das mais diferentes. Tenho na chapa Renovação e Transparência muitos amigos em que acredito. Corinthianos que valorizam a democracia dentro do clube. Que em nenhum momento ventilaram interromper o processo eleitoral por estarem no grupo de situação.

A ditadura Dualib foi a maior cafajestagem que já ocorreu no clube. O Corinthians foi sequestrado por mais de uma década e nunca o corinthiano esteve tão afastado das instâncias de decisão e participação. Ninguém que deixe de respeitar e valorizar a democracia no Corinthians pode ser considerado como alternativa viável para os próximos anos.

Mantive criticas sérias a atual gestão do Corinthians. Não houve nenhum posicionamento que não tenha sido transmitido nas reuniões que participei. Encontrei em Roberto de Andrade, candidato a presidência, uma pessoa atenta e disposta a dialogar. Percebi que ele acolheu e recebeu com atenção as minhas ponderações que não são nada além do que o desejo de mais um corinthiano preocupado com os rumos que iremos tomar.

Não sou candidato ao conselho. Não pedi nem fui convidado para nenhum cargo na diretoria do clube. Da mesma forma, não deixarei de manter um apoio crítico que não seja cego e mudo diante de questões que merecem atenção.

Sempre acreditei que a participação é a melhor ferramenta para a transformação. Isso serve para a vida política do país e também em diversos segmentos da vida social. Realizamos escolhas possíveis para perseguir os sonhos aparentemente distantes, mas que podem ser alcançados com muita luta e dedicação.

Considero importante que cada corinthiano, na medida do possível, seja associado para poder interferir de maneira decisiva no futuro do Corinthians. Para tanto, defendo também instrumentos para que o torcedor de estádio seja também um sócio do clube. Creio que a valorização do associado na aquisição de ingressos pode significar um avanço importante para que o fiel torcedor opte, primordialmente, por ser um associado do Corinthians.



Transmito a minha decisão de votar no Roberto de Andrade e desejo que cada um decida com sua consciência livre o futuro do Corinthians. Desejo firmemente que permaneçamos unidos para alcançarmos juntos os nossos objetivos para um futuro próspero e justo do Sport Club Corinthians Paulista.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A Conjuntura do Plano Dilma




Este artigo não carrega a intenção de absolver o Governo Dilma de eventuais frustrações provocadas no conjunto da sociedade, sobretudo em seus apoiadores que enfrentaram inúmeros debates em condições muito difíceis no período eleitoral.


A tentativa é realizar uma análise fria e até certo ponto pragmática sobre a conjuntura em que se insere o segundo mandato da presidenta, as possíveis motivações do Plano Dilma e seus potenciais desenlaces.


Vemos o constrangimento de alguns setores progressistas que se veem obrigados a assistir os conservadores atacando ferozmente a presidenta, mas não por enfrentar as delicadas questões que certamente provocariam a histeria das elites. É o que se esperava a partir da vitória que foi apertada, mas que se deu depois da direita enfurecida utilizar suas armas mais violentas, expor sua face mais destruidora e mesmo assim sair derrotada.


Dilma assiste a oposição malhar sem trégua seu novo mandato, mesmo tendo adotado boa parte do receituário esperado para um eventual governo do PSDB. Mas como no Brasil o ideário político e as propostas de governo são meros vernizes que encobrem interesses inconfessáveis, a oposição ignorou a possibilidade de aclamar uma suposta “vitória programática” e não cedeu nenhum milímetro na tentativa de derrubar a presidenta. Dilma começou o seu segundo governo como terminou o primeiro. Nem parece que foi reeleita pela maioria da população, talvez porque o que se mostrou até o momento tenha sido diferente do debate político que se viu no período eleitoral. Dilma está prestes a perder o apoio de quem a defendeu sem ter conquistado o apoio de quem a alvejou.


Embora seja compreensível a decepção e o constrangimento dos progressistas, é preciso analisar calmamente o contexto das principais ações do “Plano Dilma”.


O Brasil permanece sendo um país da periferia do capitalismo global. Embora nos últimos anos tenhamos alcançado certo protagonismo e ganhado importância relativa na economia mundial, continuamos com nossos destinos atrelados a uma agenda internacional e uma conjuntura que se impõe desde os países do centro até nossas terras tão férteis, porém ainda não completamente independentes.


Mesmo nos países ricos, existem disputas violentas entre as hegemonias locais. Os projetos de desenvolvimento e competitividade destes países, o poder de compra da classe trabalhadora, o fomento do mercado interno e o investimento em infraestrutura esbarram no receituário imposto pelo Mercado (com eme maiúsculo). O argumento parece razoável: o controle dos gastos dos governos e a transparência orçamentária sobre o endividamento dos Estados. Quem em sã consciência poderia se manifestar contra algo que se dá o nome de “austeridade fiscal” ou “metas inflacionárias”? Porém, existe um processo de corrupção histórica. A crise de 2008, oriunda da farra especulativa do Mercado financeiro foi convertida em uma suposta crise de endividamento dos Estados. Como se os países tivessem se endividado custeando suas infraestrutura e cobrindo os gastos sociais. Ora, os países se afundaram justamente socializando os prejuízos e cobrindo o rombo deixado pelos especuladores.


Na Europa, alguns países são governados sob efetiva intervenção do Mercado. Algumas gestões mobilizaram esforços nacionais para superar o atraso provocado pelo neoliberalismo, mas foram gradativamente abduzidas pela ditadura do Mercado. O Papa Francisco tem denunciado a escuridão sob a qual a humanidade tem sido lançada e a incapacidade de orientar o seu destino diante da apropriação das nações pelo capitalismo predatório.


Mesmo o presidente do país mais rico e poderoso do mundo enfrenta dificuldades para restaurar o capitalismo de escala. Recentemente, Obama defendeu a flexibilização das “metas de austeridade”. Sua fala tinha como pano de fundo a eleição do novo governo da Grécia, porém tem olhos internos para os desafios que ele mesmo enfrenta diante do chamado "abismo fiscal" e a chantagem de quem promete fazer "análises de risco" e se colocam como estruturas superiores ao próprios Estado.


Obviamente, o Brasil não está desconectado desta conjuntura que orienta os caminhos das principais nações do planeta. Mais do que uma crise econômica mundial existe uma crise política. Em verdade, os Estados sabem o que precisa ser feito para recuperar o dinamismo e a competitividade de suas economias, no entanto o sistema político eleitoral está capturado por terríveis forças que trabalham exclusivamente para si mesmas. Agir isoladamente, significa um risco grandioso, principalmente para um país emergente como o Brasil.


Os países vizinhos ao Brasil enfrentam dificuldades econômicas imensas. Foram mais corajosos sob muitos aspectos, mas enfrentam também surtos inflacionários mais graves e em alguns casos crise no abastecimento. A economia tem um potencial devastador sobre o ambiente político. Certamente, cada chefe de Estado faz seu cálculo político de quanto é possível suportar diante de determinadas dificuldades impostas ao conjunto da sociedade.


A dura e devastadora realidade é que diante das CONDIÇÕES ATUAIS, o Brasil não reúne potencial para impor uma nova agenda nacional, rompendo com a ordem internacional vigente na últimas décadas. De certo, isso não poderia ocorrer apenas por vontade e uma dose de coragem da nossa Chefe de Estado, mas deveria ser resultado da mobilização e desejo de diversos seguimentos da nossa sociedade, disposta a encarar os riscos e apuros das consequências turbulentas e desagradáveis que certamente viriam.


Necessário seria que tivéssemos uma elite nacional (ou pelo menos seguimentos importantes desta elite) interessadas no desenvolvimento econômico e social do Brasil. Capaz de pensar e encampar uma estratégia de progresso do país para as próximas décadas, o que incluiria preservar nossos recursos, proteger nossas reservas e investir na defesa nacional. Resistir aos ataques especulativos, superando as dificuldades econômicas e canalizando esforços para uma verdadeira revolução na educação pública. Uma elite que se apoiasse no potencial do país e investisse no futuro da nossa gente. Ainda que não fizessem isso por sensibilidade social, mas que fossem realizados grandes investimentos, para depois serem colhidos grandes frutos.


Parece desnecessário dizer que este não é o caso brasileiro. Nossas elites continuam mais perversas do que nunca. Interessadas apenas em adquirir o lucro fácil e viverem como sultões. Nem que isso tenha como consequência a desgraça do futuro do Brasil. Como disse certa vez o Cazuza: “são caboclos querendo ser ingleses”. Entreguistas pela própria natureza. O Governo Lula mobilizou esforços para disputar espaço em determinados setores da elite. Ressuscitou a construção civil, despertou os setores produtivos que estavam estagnados, injetou dinheiro do Estado para fomentar certos “campeões mundiais” do empresariado.


Mas luta de classes é luta de classes. O PT parece não entender que a suposta “aliança” com certos setores da elite é meramente funcional. Na primeira oportunidade eles colocam todos na cadeia! E não existe “brodagem” nem parceria.


Os subsídios públicos, isenções fiscais e demais “incentivos” do Estado para com a elite não causam menor indignação nos setores aparentemente interessados na “redução dos gastos públicos”. Porém, alguns poucos reais pagos aos miseráveis deste país que historicamente estiveram jogados em algum canto passando fome e esperando o dia de morrer, causa revolta nos contribuintes que “carregam este país nas costas”.


A classe média se alia as elites de maneira burra e contrária aos seus próprios interesses. Porém, sem representação política e sem consciência de seu verdadeiro inimigo, jamais apoiaria uma agenda de progresso para o Brasil. O governo largou de mão. Mesmo com tanto talento nas propagandas políticas, não soube construir um discurso capaz de atingir alguns setores da classe média. Não soube explicar de maneira simples o que é “mercado interno”. Os benefícios para economia com a política de valorização do salário mínimo, redução do desemprego e principalmente de combate à miséria.


A classe média se alia à elite com medo de ser confundida com os pobres. Apoia a direita do mesmo modo que no passado os brancos pobres apoiavam a escravidão!


Derrubar o domínio desta elite escravocrata exigiria grande mobilização social. Os setores progressistas deveriam estar articulados e capazes de identificar um inimigo prioritário. Porém, mais uma vez não é isso que se vê. A esquerda brasileira carrega vícios históricos, somados aos novos vícios de uma geração significada a partir da lógica deste “mundo neoliberal”. Os estruturalistas são dinossauros que se encontram vez ou outra por aí. Os movimentos sociais tem múltiplos inimigos, múltiplas disputas, múltiplos interesses, múltiplas pautas de promoção de justiça e igualdade. Produzimos uma geração acostumada a desconfiar do outro e incapaz de reconhecer lideranças. Temos realizado grandes passeatas de caranguejo. A imaturidade política parece ser esteticamente desejável, mas produz resultados inesperados, aleatórios e perigosos.


A esquerda brasileira continua sendo elitista como sempre foi. As discussões que ocorrem nos salões reais da esquerda quase nunca tem equivalência com a vida social da nossa gente. Todos falam em nome das minorias, porém o que se vê menos é o povão mobilizado. Nas redes sociais o bicho pega! Mas basta chegar ao debate alguém desabituado das dinâmicas de discussões de plenária dos movimentos sociais para receber uma carteirada violenta de alguém que se reivindica como emissário consagrado da justiça e paz mundial. Pouca gente joga pra somar. Cada um luta pelo seu quinhão ou pelo próprio empoderamento no “segmento do segmento relativizado da sociedade”.


Claro que o Estado tem feito pouco ou quase nada para fortalecer as mobilizações sociais. É evidente que, sem diretriz, muitos segmentos ficam entregues e desorientados. A inserção social e cidadania “via consumo” dá mostras claras de esgotamento e provoca uma epidemia de infelicidade.


Mesmo com todos os vícios da nossa esquerda, foi ela a grande responsável pela mobilização de diversos setores da sociedade que resultou na vitória de Dilma por uma margem tão apertada.


Dilma corre sério risco pelo “carão” que provocou na esquerda brasileira. Isso pode ser decisivo no futuro, caso precise de “gente que a defenda” e só encontre oportunistas e aproveitadores à sua volta.


Já vimos como as conjunturas interna e externa dificultam e limitam as escolhas de Dilma.


Muitas pessoas imaginam que um bom governo depende apenas da capacidade executiva de um governante, mas não é assim que funciona. Existem pressões das mais diversas. Conspiradores que podem trabalhar na sala ao lado. Golpistas tramando na calada da noite. Governar é como um cabo de guerra. É preciso muita força. As vezes se está com a vantagem e encorajado com o sucesso. Outras o revés parece inevitável e se está prestes a ser batido.


O Plano Dilma não se dá em uma conjuntura qualquer. Marcar posição política é tarefa importante, porém insuficiente neste momento. Analisar as medidas do novo governo descolado do momento político atual torna-se insustentável.


O ministério de Dilma Roussef não é menos conservador do que o Congresso Nacional eleito pela população brasileira. A presidenta começou seu segundo mandato sob evidente e explicita ameaça de golpe. Dê-se o nome que se quiser dar aos contorcionismos jurídicos que se avizinham ou as justificativas políticas dos “defensores da moralidade pública”. Se Dilma vacilar ela cai!


Dilma poderia sim ter feito a escolha de se apoiar na sociedade organizada para enfrentar os inimigos conspiradores. Mas sua escolha em estancar os ataques especulativos e políticos contra seu governo não pode ser desprezada. É uma estratégia! Isso se revelará suficiente ou não no futuro, mas parece claro que Dilma fez uma escolha pragmática e fria neste momento, mas é bom que se diga: de maneira republicana e dentro das regras democráticas.


Não apenas no Governo Dilma, mas em diferentes momentos da vida nacional, os governos que não se subordinaram por completo sofreram ataques furiosos do que já foi chamado por Jânio Quadros de “forças ocultas”. É importante que se diga, governos de esquerda e de direita que causaram algum nível de descontentamento na burguesia foram atacados pela mídia partidarizada. Quase nenhum deles sobreviveu. Interesses externos de forças interessadas em se apropriar das nossas riquezas organizaram golpes e promoveram torturas e violência para garantir o controle do Estado.


Para quem já realizou guerras e massacres por conta do petróleo, o que significaria uma conspiraçãozinha como essa?


Se olharmos para a história, veremos que a principal arma (que antecede todas as outras) é o ataque especulativo sobre a economia.


Como já foi dito, o futuro pode mostrar que a estratégia de Dilma é equivocada, mas pode-se dizer que Dilma tem feito o possível para jogar com o Mercado usando as armas que ele (Mercado) conhece muito bem: a ganância.


O Mercado não tem uma inteligência política única. Ele se articula em torno de interesses instantâneos cotidianos.


A tentativa parece ser estancar o ataque especulativo contra a economia brasileira. Não podemos subestimar os efeitos que poderia produzir sobre a política e a vida social uma desvalorização drástica da moeda nacional, um surto incontrolável de inflação e principalmente um onda desenfreada de desemprego. Não haveria movimento social que daria jeito em uma situação como essa.


Do ponto de vista político é muito mais fácil administrar um crescimento baixo do PIB, mas mantendo a normalidade cotidiana da vida econômica dos brasileiros.


Mais do que isso, no xadrez político, Dilma tira um instrumento poderoso da oposição que fica praticamente sem discurso e sem pauta (pelo menos a pauta que conhece bem), permanecendo restrita às denúncias e escândalos de corrupção.


Não há nada do que devemos nos orgulhar. Nada a ser comemorado. É decepcionante perceber que pouco avançamos em termos de emancipação do Brasil. Mas isso é o que temos para hoje.


Não há conformismo algum. Poderíamos sim ter feito muito mais. Este país poderia ser há tempos uma grande nação.


No entanto, continuamos dentro da nossa tradição de modernização conservadora, ou seja, tentando transformar o Brasil, mas sem ferir os velhos privilégios estabelecidos. Foi assim desde sempre. Com Getúlio, Juscelino… Mas não somos um lugar desprezível no planeta. Também conquistamos importantes vitórias. A história é escrita em letras tortas e aos trancos e barrancos temos avançado. Não da maneira que gostaríamos, mas avançamos.


O sucesso de Lula como presidente se deve em parte ao seu talento como conciliador. Embora Lula não seja um intelectual, ele entende quase que intuitivamente muitas coisas que mestres e doutores demoram anos a entender. Seu governo foi bem sucedido, entre outras coisas, porque soube negociar e (pasmem) manter a ordem econômica e institucional.


Alguns podem desprezar e achar uma grande porcaria (e é mesmo) esta ordem econômica e institucional. Porém lembremos, sempre que estas estruturas se rompem quem paga o maior preço é a população pobre que tem pouco ou nenhum instrumento para se defender.


Dilma tenta costurar uma trégua e inibir os ataques contra a economia brasileira para dar continuidade nas reformas de inclusão social. Não há dúvidas que se caso ela tivesse perdido a eleição, todas as ocasiões políticas já estavam postas à mesa para cortar mais benefícios e privatizar o petróleo. Já estava tudo desenhado.


Ainda esperamos um líder para a nossa revolução nacional? Um São Sebastião? Um enviado? Não será dessa vez. Melhor do que esperarmos alguém que caia do céu para nos defender é trabalhar duro para disputar espaço na sociedade e criar as condições para as grandes transformações que o Brasil precisa. No momento é isso que temos.