quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A felicidade é um radinho de pilha



Na Praça 14 Bis, os dois homens discutiam com seriedade a aquisição de um pequeno radio de pilha.
Pensavam nos pormenores de realizar uma compra tão importante e ambiciosa.
Contavam o dinheiro e conferiam a contribuição dos amigos que haviam participado da vaquinha. Percebi que o radio seria compartilhado por mais gente. Seria um regalo interessante para oferecer um mínimo de alívio naquela noite quente em meio aos escombros.
Conseguiram um bom desconto. O dono da banca aceitou reduzir de 25 para 20 o preço do radinho.
Eles analisavam com calma o radio. Liam a embalagem. Pareciam estar em dúvida sobre o amarelo ou o azul.
O vendedor tentava apressá-los, pois notou a minha presença. Esperei calmamente. Não apressei. Precisava de um carregador para meu celular.
Os dois homens estavam sujos e aparentemente bêbados. Mesmo assim não perdiam a concentração naquele momento solene.
Ambos não esconderam a decepção ao descobrir que o radio não acompanhava pilhas. 
Pediam as pilhas como brinde. Clamavam. Emploravam.
O vendedor demonstrava impaciência e dizia ser impossível dar as pilhas de presente, pois o desconto de 5,00 no preço do radio já era o máximo que ele podia fazer.
Inutilmente, o comerciante mostrava que o radio acompanhava um carregador de tomada.
Mas como assim tomada? Vivem todos na rua. Estavam numa encruzilhada. Conseguiram juntar o dinheiro para o radio, mas não poderiam ouvir música. Voltariam todos frustrados sem a pilha.
Eu estava com as mãos ocupadas, cheias de sacolas do supermercado. Queria cozinhar ouvindo jazz. Que ironia. Então eu fiz um sinal com a testa e as sobrancelhas ao vendedor e ele entendeu que as pilhas seriam pagas.
Os dois homens negros saíram pela calçada abraçados. Felizes com o radio novo. Cambaleavam e se apoiavam mutuamente. Ambos olhando aquele radio ching ling encantados, como se tivessem acabado de sair das Casas Bahia.
Nesta noite não teve jazz aqui em casa. Não rolou.
Estava atormentado. O lance do radio havia realmente me tocado.
Percebi que ouvir música ou mesmo algum locutor falando ao seu ouvido é uma necessidade básica como todas as outras.
Uma melodia que possa preencher alguma fissura em nossa alma. Tranquilizar um espírito que não sabe onde repousa. Uma música que possa desviar os ouvidos dos ônibus que correm desesperados por cima do viaduto. Um som capaz de sedimentar a rachadura de um coração partido. Que possa atenuar o desamparo, a solidão e a carência.
Detesto escrever história de caridade.
Simplesmente porque nenhuma caridade poderia me fazer melhor ou pior do que sou. Além do mais, auto-história de caridade é um saco.
Mas eu enchi uma sacola com algumas camisas legais que estavam espalhadas nas minhas gavetas. Percebi que eles eram jovens e possivelmente gostariam delas.
Honestamente, eu queria mesmo era ver o fim da história. Encontrar os dois rapazes com seu radio novo.
Caminhei um pouco pela praça, que na verdade é um largo no Bixiga, interrompido violentamente ao meio por um viaduto feioso. 
Não foi difícil encontrar os rapazes.
Eles cozinhavam. A noite parecia relativamente farta. A música tentava sair alta no radinho.
Da maneira deles, estavam fazendo justamente aquilo que eu planejava fazer essa noite.
Entreguei a sacola com as roupas, algumas pilhas e recebi de volta quatro sorrisos.
Ao abrir a embalagem, cada um pegou apenas uma camisa.
Voltando para casa continuei olhando para eles. Percebi que eles repassavam o excedente de camisas aos vizinhos que também moravam debaixo da ponte.
Havia alguma beleza naquilo tudo. Tristeza, mas uma riqueza que muita gente não consegue ver porque é pobre de espírito.
A noite continuou sem jazz.

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