segunda-feira, 25 de julho de 2011

A Viuva do Samir

              Todo ser humano tem reservado para si uma porção de dias destinados a protocolos sociais. O homem nasce, se batiza, cresce através dos anos, cumpre seus ritos religiosos, aquele que pode se forma na universidade, casa, enche a laje, faz mudanças, fica doente e finalmente morre. Em todas essas ocasiões ele deve contar com testemunhas que averigúem a veracidade desses fatos, contribuam para sua realização ou que ao menos sirvam de platéia para que o show da vida tenha um mínimo de audiência.

              Por isso somos obrigados, mesmo contra a nossa vontade, a irmos em aniversários, casamentos, nascimentos, formaturas e primeiras comunhões. Outras vezes devemos ajudar nas obras ou com a mudança na casa de um amigo ou parente. De todos esses compromissos o mais interessante me parece o velório. Não só porque é quando se findam as obrigações com aquele determinado indivíduo, mas principalmente porque é o mais teatral de todos.

             Por mais sinceras que sejam as intenções ou sentimentos dos participantes desse evento, é pitoresco apreciar as demonstrações explícitas de afetividade pelo defunto em questão. Muitas vezes existe um comitê organizador que decide quem serão os escolhidos a carregar o caixão até o seu destino final. Carregar a alça do caixão te torna uma das estrelas do espetáculo. Deixa-se de ser um mero coadjuvante para se tornar peça chave no momento derradeiro da história do indivíduo. Todos procuram especular o laço de afinidade entre os carregadores e o morto. Muitas vezes, alguém mais próximo se sente desprestigiado por não lhe sobrar nenhuma alça sequer. É como se o morto lhe tivesse feito uma desfeita. Muitos abandonam os prantos e passam a revolta pura e simples.
             No entanto, ninguém pode superar no velório a estrela maior do espetáculo: A VIUVA! Daí pode-se averiguar boa parte do caráter do sujeito que abotoou definitivamente o paletó. Se a viúva for muito contida, logo vão dizer que o defunto era um traste, ou pior, que era corno. A viúva clássica e virtuosa deve demonstrar com toda a sua volúpia o desespero ao perder seu companheiro. Deve deixar claro que parte de sua vida ela enterra junto com o caixão.
            Outro dia fui ao enterro do Seu Samir. Tudo muito bonito e organizado. O caixão era tão lustroso e refletia o rosto de cada um que se aproximasse do corpo. Encostado na parede, ao lado das muitas coroas de flores estava a tampa com um crucifixo dourado que contrastava belamente com aquela madeira reluzente.

             A viúva estava impecável. Não pela beleza, mas pela dramaticidade. Olhava o rosto esquálido do Seu Samir que morrera de câncer. Dizia alto para que todos ouvissem:
- Olha Samir, meu amor, eu nunca te abandonei. Acompanhei por todos esses nossos quarenta anos. Até ao Líbano fomos juntos. Mas agora Samir, vou ter que te abandonar. É a única vez que vou te deixar na vida.
             Enquanto proferia seu discurso inflamado os funcionários responsáveis trataram de levantar a tampa que descansava tranquilamente na parede imediatamente atrás ao caixão e sugeriam que já bastava. Agora deveriam cumprir o horário determinado para a cerimônia e terminar com aquilo tudo. Esse deve ser um trabalho delicado. Ao mesmo tempo em que faz parte da rotina lacrar caixão e que dificilmente o profissional terá algum tipo de vínculo afetivo com o morto, deve-se ter sensibilidade e manejo para escolher o momento ideal, e pronto! Encerrar o serviço.
               Mas a viúva era atenta e a cada momento em que os agentes se preparavam para dar o bote ela abria o berreiro. Precisaram duas amigas ou cunhadas para afastar a Dulce do caixão para que o enterro, enfim, terminasse.
               Não conhecia a família do Seu Samir, mas me agradava muito ouvir as histórias do velho sobre seu passado glorioso. Não no exército, mas nas orgias. Dizia sempre:
- Filho, nas minhas festas eram dois mocinhas pra cada amigo meu. Mas sem sacanage. Cada um comia os duas que escolhe. E nesse tempo não tinha esse AIDS não. O máximo era um gonorréia, mas isso em uma semana já tava pronto. Ai que tempo bom. Meu bastola era igual ao seu, ficava durinho. Agora só fica até a metade.
Ele gargalhava.
               Contava sempre a mesma coisa. Acho que o velho morreu feliz. Brincou bastante. Até na morte, sua esposa Dulce havia cumprido seu papel de viúva inconsolável com louvor. Foi perfeito para ele. Do início ao fim. 

                O Seu Samir fumou demais e o corpo não agüentou.

              Fiquei resignado no meu canto. Bem afastado do caixão. Embora seja fascinante a face de um morto. A expressão do cadáver parece revelar seu último pensamento em vida ou talvez o primeiro em morte, não sei. Não me atrevi chegar perto. A concorrência era muito grande e nem ele acreditaria que estaria presente ao seu último evento.
              Pensei que nunca mais ouviria falar nas histórias do Seu Samir. Mas por uma enorme coincidência passei a conhecer o seu outro lado. O de marido dedicado.
        
          Outro protocolo. Almoço de aniversário. Daqueles mais intimistas em que não podemos nos esquivar. A idéia sempre é ser visto ou abordado o mínimo possível.
           Mas o almoço era num apartamento. Era quase impossível não ser visto e o contato era absolutamente inevitável.
              Adoro a cozinha, sentei-me na cadeira e me servi de uma xícara de café enquanto observava a preparação do almoço. Toca a campainha. Ouço um grito estridente:
- OLÁÁÁÁÁÁÁÁÁ, meu amor, como está linda e blá blá blá...
               Para a minha surpresa era a viúva do seu Samir.
               Porra, que mundo pequeno. Agora sim fui apresentado. Sentou-se imediatamente a minha frente. Tentava evitar, mas era impossível eu deixar de olhar aquela figura alegórica. Vestia um vestido florido, maquiagem forte e absolutamente coberta por jóias. Sinceramente, não sou um perito em autenticidade, mas as jóias pareciam reais. Uns seis ou sete colares. Pérolas, ouro e diamantes todos misturados no mesmo pescoço. Anéis em todos os dedos. Pulseiras e brincos. Por último, mas não menos importante estava um gato branco que não largava de forma nenhumas. As oportunidades em que o gato tentava escapar era imediatamente preso entre os seios fartos e desajustados da Dulce.
               Morava na cobertura em frente ao prédio. Era um bairro caro de São Paulo.
              O almoço era de comida árabe, com tudo o que se tinha direito. Trocavam-se dicas culinárias e eu resolvi assistir a tudo. A dona da casa também era viúva. Havia vivido  no Líbano e eram vizinhas também naquele país. Era certo que a Dulce, a viúva do Samir, não havia me reconhecido, mas fatalmente a conversa emigrou para o Líbano e começou o show de lamentações.
- Dona Dulce, eu conheci o Seu Samir. Considerava-o um amigo, muito embora fosse bem mais jovem do que ele.
- AHHHHHHHHHHHHHHH, meu Deus. Venha aqui, meu filho lindo.
                Tive de beijá-la. Agarrou-me com força e logo seus olhos marearam.
- O Samir sempre teve o espírito jovem. Por isso a amizade de vocês. Que lindo, meu Deus. Sobre o que conversavam?
                Respondi rápido:
- Sobre ciência.
- Ciência?
- Pois, é. Ele tinha uma visão muito particular das coisas do mundo e adorava falar sobre o comportamento humano também.
- Eu nem sabia que lhe interessavam essas coisas, mas o Samir era muito inteligente. Nunca no mundo vai haver um homem tão inteligente como o Samir. Tudo o que tenho, graças a Deus, vem do esforço e da inteligência do Samir. Agora não tenho quase nada mais. Gastei tudo, até o último centavo para pagar o tratamento do Samir. Com o que sobrou, mal consigo pagar o condomínio do meu apartamento que é muito bom. Graças a Deus e ao Samir.
                   Samir e Dulce não tinham filhos. O único faleceu em um acidente de carro. Isso eu já sabia, mas procurei evitar tocar no assunto.
                   Perguntou se eu não conhecia nenhuma moça ou rapaz de confiança que quisesse pagar um aluguel para ajudar nas despesas com o apartamento.
- Dona Dulce, existe rapazes e moças na minha Faculdade que procuram justamente isso. Quanto pensa em cobrar?
- Bom, o condomínio é de três mil e quinhentos reais. Penso que por mil e quinhentos eu poderia alugar o quarto de hóspedes. É uma suíte com banheira.
                  Comecei a duvidar de sua sanidade. Nenhum universitário que vive em São Paulo pode dispor desse valor para viver ao lado de uma velha. Se pudessem chamar mais alguns amigos para compartilhar e realizarem algumas festas regadas a vinho e pizza poderia até ser, mas nesse caso seria impossível.
                  Depois do almoço votaram as lamentações. Dizia que nunca mais nenhum homem a tocaria. Que Samir foi o primeiro e único. Não trairia a memória do Samir. Acho que ninguém ousaria trair a memória do Samir. A mulher estava arruinada pelo tempo e pelo sofrimento. Tanto por fora quanto por dentro. Acho que não raciocinava direito.
- Olha filho. Ando com todas as jóias no meu corpo e ainda tenho um monte guardado no baú dentro da cobertura. Você acha que eu sou boba de andar com todas as outras no corpo? Vai que alguém me rouba. Essa cidade está cada dia mais violenta.
                   Apontou para um dos colares:
- Esse aqui ele me deu uma semana antes de morrer – caiu em prantos – Nessa noite dormimos bem agarradinhos, não é porque somos velhos que não temos desejo.
- Eu sei Dona Dulce.
                   Insistiu tanto que me fez visitar a cobertura. Ao entrarmos no apartamento ela finalmente liberou o gato:
- Vai pra cama, Samir. Agora.
                   O gato tinha o nome do falecido. Meu Deus.                  
                   O apartamento era bonito, mas mórbido. Fotos do Seu Samir por todos os cantos repousavam sobre móveis antigos. Mostrou-me o quarto de hóspedes e ofereceu para que eu ficasse um tempo até me acostumar.
                   Agradeci a oferta, mas não pude aceitar. Além do mais, o ambiente era fantasmagórico.
- Por que não, meu filho. Ai, como você me lembra o meu filho que já se foi. É igual. Como aquele menino era carinhoso e inteligente. Só tirava notas boas...
- Eu sei Dona Dulce. Seu Samir me contava.
- Ai, o Samir era louco por ele. Acho que o Samir morreu de tristeza, só pode. Não iria me abandonar assim. Quis encontrar o filho.
- Ok, Dona Dulce, mas eu realmente preciso ir. Tenho um compromisso com a minha mãe.
- Ai, que lindo. Como é linda a relação de mãe e filho. Eu e o meu filho éramos inseparáveis. Mesmo na universidade eu levava e buscava. Ia ser médico doutor.
- Pois é Dona Dulce, mas eu tenho que ir.
- Ta bom, não vou lhe atrasar. Da um beijo na mamãe.
- Sim claro.
- Vou procurar a chave. Espera. Tenho que procurar o Samir primeiro.
                   Confesso que estava morrendo de medo. Incomodava-me muito estar naquele ambiente e queria escapar o mais breve possível. Tive ainda que esperar ela localizar o gato Samir. Ele escondia-se debaixo do sofá, mas a velha o encontrou pelo faro. Puxou-o com força. O Gato tentou resistir pregando as unhas sobre o carpete, mas se fodeu. Dulce segurou-o com força e prendeu-o novamente entre os seios.
                   Finalmente a porta se abriu e pude sair. Mal conseguia olhar pra trás. Arranquei-me dali e voltei pra casa. Passei o dia inteiro com dor de cabeça.
                  Por esses dias fiquei sabendo que se ouviram gritos no prédio da Dulce:
- Não, meu Deus. De novo não. Ai meu Deus por que não me levas junto. NÃÃÃO!
                 O gato Samir estava espatifado no pátio do prédio e todos os condomínios vizinhos puderam ouvir ou presenciar por suas janelas aquela cena trágica. Dulce ajoelhada ao lado do cadáver tentando recolocar as entranhas para dentro do seu corpo morto e deformado.
                 Parece que o gato decidiu que já bastava tudo aquilo. Saltou da cobertura do Edifício e voou tranquilamente tendo alguns segundos de liberdade até repousar no seu sono definitivo e espalhafatoso. Samir, o gato, também morreu.  

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