sexta-feira, 8 de julho de 2011

O apartheid nos estádios de futebol


Publicado na minha coluna Bola na Teia no site Teia Livre



Vou ao estádio de futebol desde criança.
Meu pai me levava aos jogos com uma só torcida. Aqueles mais tranqüilos.
Seu jogo preferido era Corinthians x Juventus. Um clássico da zona leste paulistana.
Aos dezesseis anos comecei a ir sozinho aos estádios, inclusive naqueles jogos “cabeludos”. Sofri alguns perrengues, mas logo aprendi a me virar e a me comportar em meio à multidão. Era preciso ser esperto e compartilhar alguns valores particulares ao novo ambiente para não me ferir naquela selva.
Ontem, mais uma vez, peregrinei até o Pacaembu para ver a vitória de virada do Corinthians diante do Vasco da Gama.
Mas o cenário é bem diferente de vinte anos atrás, quando comecei minha aventura nos estádios e imperava a simplicidade do esporte do povo.
Procurei as bilheterias horas antes da partida para reservar o meu ingresso. Dei a volta no estádio para procurar o portão correto de atendimento. Eles mudam a cada semana e é impossível saber ao certo onde comprar.
Passei um bom tempo na fila. Mas o problema não era o número de pessoas, mas o sistema que havia caído.
Hoje existe a tecnologia e não são mais vendidos os tíquetes já impressos. Quando o sistema cai, as vendas ficam suspensas.
De repente o computador recupera o seu estado de espírito e os ingressos voltam a ser vendidos. De vez em quando acontece de retornar o sistema, mas os bilhetes já estarem subitamente esgotados. Mistério.
Os preços hoje são muito mais caros. Aos dezesseis anos eu trabalhava como Office boy e recebia pouco mais de um salário mínimo por mês. Comprava ingresso para todos os jogos e isso sequer comprometia meu orçamento. Agora, os ingressos estão cada vez mais caros. Qualquer dia desses será necessário comprovante de renda para entrar no estádio.
Antigamente, as figuras mais respeitadas da torcida eram os “ratos de estádio”. Aqueles que freqüentavam todos os jogos e tinham histórias para contar. Os velhos eram idolatrados e no intervalo do jogo contavam histórias de um passado remoto. Ouvia as histórias com admiração e até mesmo com espírito de subordinação à “autoridade” dos velhos.
Há alguns anos, os torcedores organizados foram criminalizados.
Ontem, os torcedores comuns foram deslocados da fila para que dessem espaço para as entregas dos camarotes. Uma empresa de eventos trazia o Buffet com baguetes, frios, salgados e antepastos. Seria um coquetel, sem dúvidas. A CET apoiava a operação.
Quando eu era moleque, comprava-se o ingresso na hora do jogo e ainda assim todo mundo entrava no estádio. O produto mais vendido era o amendoim. Eram despejados sobre nossas próprias camisetas. Cabia bastante porque ninguém usava baby look.
Ouvia-se o berro do sorveteiro que batia forte no isopor e vendia seus sorvetes gritando: chocolate, coco, limão: vai dar coringão!
Era emocionante. Tudo muito simples, mas incrivelmente mágico.
Hoje são celulares, câmeras, iphones e televisores portáteis entre outras parafernálias que compõem o kit torcedor pós-moderno.
Eu me contentava em levar a mesma camisa Kalunga e repetia sempre a mesma cueca para dar sorte.
Na saída do estádio o pernil era refeição obrigatória para abastecer o corpo, já que a alma estava repleta de felicidade. Ainda que porventura eu estivesse decepcionado com o resultado da partida, havia exorcizado todos os meus fantasmas.
Ontem, a rapaziada que corria de um lado para outro do estádio, carregando a mercadoria nas costas, tentando levantar um troco, foi detida. Seus produtos foram apreendidos e colocados num caminhão da prefeitura.
Um homem com cerca de 50 anos lamentava a perda e suplicava pela compreensão do “rapa”. Ele falava com a voz embargada e continha o choro.
Confesso que também senti vontade de chorar.
Quando foi anunciado, fiquei até feliz com o lance da copa. Mas sei lá. Do jeito que as coisas andam eu estou a cada dia mais longe dos estádios.
Ou pior. O estádio está ficando cada vez mais longe de mim. De quem eu sou. Da minha identidade.
Dizem que para sermos modernos temos que ser iguais aos europeus.
Então é isso. É o progresso.
 Lembrei-me do Adoniran: Saudosa maloca, maloca querida din din donde nós passemo dias feliz de nossa vida.

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